Os meus super heróis: simplesmente... o Massuça
O Massuça (não sei porquê mas nunca o chamo de Zé... talvez por ser também o meu primeiro nome?) não fazia nada. Depois começou a fazer triatlo. Depois começou a fazer Ironmans. Como eu lhe percebo o chamamento dos desafios maiores... Mas parece que não gostou, porque um dia decidiu fazer não mais um Ironman, mas 5... de seguida. Porquê? Fica a minha tentativa de conhecer um pouco melhor um amigo já de alguma "longa" data.
José (eu): Desculpa começar assim, mas se um (Ironman) já é uma brutalidade, como são cinco de seguida?
José (Massuça): Ahahaha!!! O que custa mesmo é só o primeiro, hahahaha!!! Parece muito, mas também um Ironman parece imenso quando comparado com um maratona, e uma maratona parece tão longínqua quando fazemos corridas de “apenas“ 10kms. Podia dizer que é tudo uma questão de escalas.
Mas mais do que as dores musculares (que tens garantidas), há que estar à altura de uma tremenda luta entre o teu corpo, que te diz que já chega, que não quer mais, que tens que parar, e a tua cabeça, que diz que não podes, não queres, que não vais parar. E então descobres que a tua maior força é o querer e que a tua maior motivação é saber que acreditam em ti e que não os podes defraudar. É incrível como algo tão solitário como um aprova de ultraresistência se pode resumir à tua relação com os outros.
A verdade é que nunca pensei muito na distância, na dimensão, foi sempre um (e só um) desafio. Mas descobri que foi um verdadeiro teste aos limites da coragem, do sacrífico e do foco.
Houve momentos de enorme prazer, outros de muito sofrimento, mas principalmente houve uma enorme sensação de realização, de superação e de plenitude comigo mesmo, de perfeita sintonia entre corpo e mente, porque quando te aproximas do limite todas as tuas “peças” têm que encontrar o ponto de equilíbrio, caso contrário descarrilas.
E o segredo, a “cola” que ligou o físico com o mental, foi o emocional. E engraçado... foi esse componente (o emocional) o que, no fim, chegou mesmo no limite. A carga emocional de um desafio destes é que é mesmo brutal.
Conheces certamente o Iron Cowboy. Ele fez 50 Ironmans de seguida. Há limites?
Estás a ver... fazer 5 quando comparado com 50 é só um décimo… Conheço a história do James Lawrence e do desafio 50:50:50 a que se propôs (50 distâncias Ironman, em 50 dias, nos 50 estados dos EUA). E desse feito recordo essencialmente, muitas vezes, que uma das maiores motivações dele foi o ter sido tão criticado quando apresentou a ideia. As pessoas apontam logo impossíveis em tudo. É a reacção imediata. Mas até para podermos dizer que é impossível, o mesmo tem que ser tentado!
Relativamente ao desafio do Iron Cowboy, mais do que os 50 Ironman, acrescenta ao desafio a questão logística de ter que se movimentar de estado para estado, condicionando assim o tempo de descanso e a recuperação. Isso sobrecarrega imenso o atleta em termos de desgaste.
Essa dimensão logística da deslocação entre “provas” acrescenta ao desafio do triatlo, que já por si é um desporto em que o atleta é posto à prova em muito mais do que apenas em três modalidades. No triatlo (particularmente no triatlo de longa distância), o atleta é naturalmente “testado” na natação, no ciclismo e na corrida, mas tem igualmente que estar a top em termos de organização (para nas transições não perder tempo a procurar o que precisa para a secção seguinte), tem que estar bem treinado e muito eficaz em termos nutricionais, tem que ser muito disciplinado na hidratação e extraordinariamente forte mentalmente, particularmente na componente de alerta aos sinais do corpo, para poder gerir o seu esforço, para “automaticamente” perceber se tem hipóteses de puxar mais, ou se terá que se proteger. E isto, muitas vezes, já é feito no limite.
As provas de vários dias acrescentam exponencialmente a estes desafios já por si bastante exigentes. E o feito do James Lawrence é do outro mundo também por isso. Nem sei se algum dia alguém o irá ultrapassar. Talvez um dia, um "tuga" tente acrescentar mais um 50 ao desafio e se proponha fazer 50:50:50:50, cinquenta distâncias ironman, em cinquenta estados, em cinquenta dias, com 50 anos.
E tu, sentes que tens limites?
É claro que tenho, todos temos. Não nos podemos é deixar “limitar” por eles. Podemos sempre reajustá-los, alargá-los, redescobri-los. Os impossíveis são permanentemente redefinidos e essa é uma das razões de sobrevivência e evolução de uma espécie tão fisicamente frágil como o ser humano. O que nos falta em músculo sobra-nos em capacidade mental e vontade.
Mesmo nestes desafios mais extremos em que por vezes me coloco, tenho o compromisso (comigo e com a minha família) de nunca andar em “red-line”, ficar sempre um pouco antes desse ponto, não ultrapassar essa linha. Mas tenho igualmente para mim que nunca me irei deixar condicionar por limites ou medos impostos por terceiros. E muito menos me deixarei condicionar por limites físicos, morfológicos ou etários. Eu tenho que descobrir os meus limites, e conscientemente sabendo que os meus são só meus e diferentes de qualquer outro.
Desde de muito jovem que jamais deixei que as características morfológicas me proibissem de fazer algo que quisesse muito. É claro que me podem condicionar de alguma forma, mas não me podem proibir de usufruir do gosto de tentar. E por vezes até descobrimos que somos maiores que esse “condicionalismo”.
Já foste muito diferente… noutros tempos. Como eras na altura?
Em criança era o gordinho da família. Sempre fui o baixinho, “atarracado”, como dizem no Alentejo, sem qualquer talento para o futebol de rua com os amigos (era sempre o último a ser escolhido paras equipas), mas nunca desisti de querer participar (nem que fosse à baliza). Hoje, se calhar, chamavam os pais das outras crianças à escola porque estavam a fazer bullying e eu coitadinho estaria a ser vítima. Hoje acho que “almofadamos” demais o processo de crescimento… mas isso é outro assunto.
Mas eu nunca desisti de tentar, de pedir para jogar e de aproveitar cada oportunidade que tinha, e isso foi construindo carácter. Sem saber que o estava a fazer aprendi a ser paciente e esperar pela oportunidade, a ser resiliente e persistente na tentativa de participar, a aceitar quando não me escolhiam não como derrota ou falhanço, mas como oportunidade de ficar de fora a avaliar os pontos fortes e fracos dos outros, para os poder desafiar. E quando entrava a saber que tinha que dar tudo, tinha que me superar. Com o passar do tempo comecei a descobrir alguns desportos onde até me desenrascava e, em alguns, até já era eu que escolhia as equipas. Nunca desisti e nunca deixei de ter um sorriso. E isso serviu para o resto da vida.
E como descobriste o triatlo? Porque não outra modalidade?
Sempre achei que o triatlo tinha um “encanto” peculiar. Especialmente aquelas provas nos primórdios do desafio Ironman no Hawai, com tremendas lutas entre Dave Scott e Mark Allen como a de 1989 em que conseguem fazer quase toda a maratona lado a lado sem dizerem uma palavra e sem se conseguirem derrotar mutuamente. Toda aquela superação era algo extraordinariamente inspirador. Mas ao mesmo tempo era algo completamente inalcançável para mim, um simples mortal.
Por isso fui apostando nas minhas corridas. E assim fui evoluindo nas provas de estrada, aumentando gradualmente as distâncias, até que um dia me lesionei num gémeo (numa maratona) e me vi obrigado a estar parado (não podia forçar a perna).
Mas como já não sentia bem ficando sem actividade física, e enquanto não podia usar a perna para correr, fui para a piscina e fazia treinos de natação. Nessa altura lembrei-me então que podia tentar realizar o meu sonho de fazer triatlo. Assim quando a perna melhorou, comecei logo a treinar ciclismo (porque apesar de não poder receber impacto directo com a corrida, podia usar a perna para pedalar). Ainda por cima estava na altura a treinar com o António Nascimento um triateta de longa distância (que tinha acabado de fazer um Ultraman) e se eu já tinha o bichinho do triatlo convivendo com ele ainda cresceu mais.
Fiz com a equipa dele a primeira prova, curtinha, em Lisboa e nunca mais parei de fazer triatlo. Comecei pela distância Olímpica e fui gradualmente aumentando as distâncias. Aliás desde o início desta minha actividade desportiva que tenho a regra de só passar para a distância seguinte quando me sinto confortável com a anterior.
No triatlo gosto muito da necessidade de foco extra-físico. No triatlo tens que estar permanentemente muito concentrado, em cada uma das modalidades, mas principalmente nas transições e nas necessidades exteriores ao desempenho “muscular”. Não te podes esquecer de nada, tens que ter tudo muito organizado e o processo de transição a cada nova modalidade tem que estar muito bem treinado. O equipamento é totalmente diferente entre modalidades o corpo usa músculos diferente que é necessário reactivar e testar antes de puxar e tudo tem que ser feito de forma natural e concentrada/focada pois há algumas regras que tens que cumprir dentro do parque de transição caso contrário podes ter penalizações que te podem estragar uma prova.
E para além desta concentração e disciplina aprecio bastante a possibilidade de poderes ter um desempenho superior pela capacidade emocional, algo que pouco se treina (porque não é fácil) mas que pode dar-te ou retirar-te um extra-boost. Eu aqui uso quase sempre um doping, ahahaha, quase sempre tenho a minha família comigo a acompanhar-me nas provas e até mesmo em provas longas de Ultradistância são eles a minha equipa de apoio.
Sempre achei e agora tenho a certeza que o triatlo concentra três vertentes mentais/emocionais nas suas três modalidades (coragem, espírito de sacrifício e foco) e esse jogo é mesmo muito aliciante. Não há outro desporto que te desafie de forma tão completa física, mental e emocionalmente como o triatlo de longa distância.
Pergunta inevitável: como treinas para um desafio como o Epic5? É igual a treinar para um Ironman? Fazes alguma coisa mais específica?
Em termos de treino técnico não há muitas alterações. A grande diferença está nos volumes de treino. E quando digo volumes, nem se trata de treinos maiores num só dia, refiro-me sim a volumes acumulados na semana de trabalho.
Tentámos ao máximo replicar a carga contínua de esforço que o corpo iria receber durante os cinco dias de prova e em simultâneo procurámos simular o limitado tempo de recuperação entre os vários dias de prova. Tive semanas de 35 horas de treino agregado e muitas horas de bicicleta que, por razões logísticas, foi necessário fazer em casa no rolo. E isso foi mesmo uma componente importante para o treino mental.
Um dos desafios foi variar o treino para não criar monotonias que desgastam e diminiuem a capacidade de foco. E nesse aspecto optámos por fazer (eu e o meu treinador Zé Estrangeiro) alguns treinos em prova, o que foi uma excelente ideia, pois mesmo em treino sempre testamos o nosso registo mais competitivo e isso, no EPIC5 veio a revelar-se muito importante, particularmente no último dia quando me vi na frente da prova com hipótese de vencer mas a ter que lutar por isso com o atleta espanhol que me perseguia.
Sei que a tua família te acompanha muito. Seria possível levares a cabo um desafio assim (ou semelhante) se eles não estivessem na mesma sintonia?
Seria impossível (afinal há impossíveis, hahahahaha!!!). Aliás a decisão final de embarcar neste desafio foi deles, eu apenas coloquei a hipótese sobre a mesa e revelei a minha enorme vontade de aceitar o convite para participar, a decisão (a autorização) foi deles.
E inicialmente até estava previsto que a minha equipa de apoio durante a prova (tal como foi nos três dias do UltraMan no país de Gales) seriam eles. Acontece que por instruções da organização, devido à possibilidade de grande privação de sono, aconselharam a que a equipa fosse mais sénior. Depois de muito ponderar, e novamente por decisão deles (que muito custou a todos), optámos por não acompanharem fisicamente o desafio desta vez. Em boa hora o fizemos, pois, a privação de sono foi mesmo um factor muito pesado na equipa (na penúltima noite dormimos 2h30 minutos e na última 1h45 minutos). Mas estiveram sempre comigo, em todos os momentos. E no fim da prova tinha um sms do meu filho que dizia simplesmente isto: “- Pai, ORGULHO”. Todo o esforço valeu a pena naquelas duas palavras que sei eram de toda a família.
Além do triatlo, mais alguma coisa? Cervejas e festas? Afinal de contas, és um Ser humano como todos nós, certo?
Claro, aliás comecei a correr para poder comer e beber à vontade, hahahahaha!!! Não sou muito de festas, gosto mais de um bom filme, um livro cativante, ou mesmo uma conversa bem-disposta à volta de uma tábua de queijos com um bom copo de branco geladinho.
Mas para além do triatlo há outras “coisas” sim, muitas. E o problema por vezes é mesmo conseguir conciliar todas as coisas que há e que se gostavam de fazer. Eu e a minha família gostamos muito de viajar e embora o triatlo e as maratonas permitam juntar essa vertente do turismo para o resto da família, por vezes preferimos mesmo ir só de viagem e sem horários para nada. Gosto também de acompanhar o rugby do meu filho da mesma forma que gostava muito de ir ver as provas de natação da minha filha. Mas gosto muito de ficar em casa, sossegado no meu cantinho com a minha mulher, só a usufruir, e isso já há algum tempo que não consigo fazer!
Quem é que te inspira?
Inspiram-me as mães que, sozinhas, com um filho nas costas, outro na barriga e mais um pela mão, com bacias pesadas de ananás à cabeça, vendem fruta pelas ruas de Luanda, todos os dias. E mesmo assim, porque são muito mais do que resilientes, quando as abordas têm sempre um sorriso para ti. Para elas não há dificuldade que as deite abaixo.
Inspiram-me as crianças que brincam sem brinquedos, sem sapatos, sem birras. Que do pouco ou nada fazem tanto com a imaginação, a sua força mental é imensurável.
Mas inspiram-me também e mais fundo ainda, seres humanos extraordinários com quem tive a sorte e o privilégio de conviver e que me tocaram muito pela capacidade que tiveram durante toda a vida de relativizar momentos maus, de terem sempre uma atitude positiva, mesmo em situações muito difíceis, pessoas com uma postura construtiva, principalmente nas críticas e, acima de tudo, inspiram-me as pessoas leais, as pessoas de principios dos quais não abdicam, pessoas honradas para quem o maior valor que tinham para oferecer a alguém era, em primeiro lugar, a sua palavra. Tenho muita pena que estas pessoas estejam em vias de extinção.
E sabes que mais? Durante os momentos mais difíceis de muitos dos desafios a que já me propus, eles vem visitar-me sempre com uma “palavra” de conforto e ânimo, recordam-me muito do seus ensinamentos feitos de experiência. E eu fico sempre mais forte!
Como te vês quando tiveres 80 anos?
Vejo-me a desafiar os netos (os meus e os de outros) a terminarem uma prova de triatlo longo comigo, hahahaha!!! Porque sei, sinto nas palestras que tenho dado nas escolas, que os nossos jovens precisam e gostam de ser desafiados. Eles querem, naturalmente, redefinir limites, constantemente. E nós, os mais velhos, temos “a mania” de lhes castrar a vontade, o sonho. Quando o que devemos fazer é orientar, focar essa vontade para objectivos construtivos. Só que isso dá mais trabalho e é muito mais fácil dizer que não pode e simplesmente proibir que o façam.
Por isso aos 80 quero continuar a ser um desafiador, particularmente dos mais novos.
Algum conselho que queiras deixar? Ou ainda, qual foi o melhor conselho que alguma vez alguém te deu?
O Zé Estrangeiro (o meu treinador) deu-me, aquando da primeira prova juntos, um conselho desportivo, que acabou por ficar para a vida. Parece estranho, mas uma vez observado em situações extremas vão perceber. O conselho é muito simples: “Quando te sentires bem, abranda.”
E acreditem que parecendo completamente inverso à necessidade natural (em especial quando em competição) é uma ideia que devemos seguir. Quando a vida está bem, abrandem e vivam-na, quando estás em algo belo, abranda e comtempla, usufrui e carrega baterias com esses momentos, para quando vierem os momentos difíceis (e eles virão) poderes estar mais forte do que o pelotão. Faz todo o sentido. E no triatlo também funciona!
Não sou de dar conselhos, gosto apenas de deixar relato da minha experiência. Por isso sugiro que vivam a vida ao máximo das vossas capacidades, não desperdicem talento, mas pela minha experiência também não tentem queimar etapas, não saltem degraus, cumpram as fases necessárias para uma sustentada evolução. Não tentem fazer algo mais avançado sem consolidarem o patamar imediatamente anterior e preparem-se para tudo, para o bom e para o mau.
Construam um saber alicerçado em experiência (porque a vossa experiência será por certo diferente da minha e por isso bastante mais valiosa para si) e recordem que o nosso único adversário somos nós. Se pudermos ensinar pelo exemplo já vencemos.
E porque tenho muito medo de um dia, um qualquer médico me diga que não vou poder continuar, tento desafiar-me todos os dias (profissionalmente, desportivamente, como homem, pai, etc.) para que, amanhã, quando não puder mesmo continuar, não tenha com que me lamentar pelo que podia ter feito e, pelo contrário, tenha muitas memórias de uma vida vivida ao máximo, mas com limites.
E como gostarias que as pessoas se lembrassem de ti daqui a 100 anos?
Provoca uma sensação estranha essa pergunta… nunca tinha pensado nisso. Acho que porque nos obriga a pensar no nosso fim, no depois de nós. Afinal há mesmo um limite. É imposto pelo tempo, né? Mas se conseguires que se lembrem de ti, já venceste o tempo, mais um limite desmistificado.
Respondendo à tua pergunta, até tenho medo que as pessoas se lembrem de mim, porque acho que se vão lembrar de um “maluco” que fez umas coisas doidas, o que até poderá ter levado a que outros ainda mais “malucos” fizessem coisas ainda mais doidas. “Esse tipo era má influência”, dirão, hahahahaha!!!
Preferia, portanto, que não se lembrassem de mim, mas sim de algo em que acredito piamente, que é: mais do que viver uma vida sobre a qual valha a pena escrever ou alguém recordar, vive uma vida que orgulhe os teus filhos de a ter vivido contigo e que provoque nos teus netos e bisnetos o profundo desejo de te ter conhecido pessoalmente.