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Ex-Sedentário - José Guimarães

A motivação também se treina!

Seg | 21.05.12

Algumas histórias no Ultra Trail de São Mamede

José Guimarães
Recordo-me de ler há uns tempos um artigo que falava de corridas longas, maratonas, ultra-maratonas e afins. Esse artigo dizia que, por mais preparação que se faça, é praticamente impossível de saber o desenrolar dos acontecimentos ao longo de uma prova desta natureza. E a prova deste fim de semana teve várias histórias. Teve a minha história, a história do Daniel, a do Luís, a do Eduardo, a da Ana, da Inês e do Vicente, a história do Pedro e a história de todos os outros que conheço e que não conheço. Este fim de semana correram-se os 100km do Ultra Trail de São Mamede. Ou melhor, alguns correram-nos na totalidade, outros não. Eu fui um dos que não correram. utsm-grupo Não quero parecer com este último comentário que estou de alguma forma amargurado ou desiludido, ou até arrependido de ter ido a Portalegre. Pelo contrário. Não trocava os acontecimentos deste fim de semana por nada. Mesmo não tendo corrido a totalidade da prova. Explico porquê: A minha história Há provas para as quais me gabo de fazer tudo certo para que depois tudo corra bem. Conscientemente, esta não foi uma delas. Começa pelo facto de ter passado as 3 semanas anteriores a recuperar de uma lesão no joelho direito, devido a um encontro imediato do mesmo com a esquina bicuda de uma mesa de restaurante. Foram praticamente diárias as sessões de fisioterapia no consultório do Sérgio, quase diários os treinos de natação ou de TRX e praticamente inexistentes os treinos de corrida. Ora nestas coisas não se fazem milagres, o que quer dizer que, ou se treina para correr, ou não. E se não se treina, não se pode esperar conseguir simplesmente chegar e correr. Muito menos 100 km (neste momento estou a cair em cima de mim próprio com um chicote na mão). Foram algumas as pessoas que me advertiram para ter cuidado, para não entrar em exageros, mas que apesar de tudo confiavam no meu bom senso para não me magoar a sério. Eu ouvi-as, mas mesmo assim lá fui. Fui tentar. Quem gosta de correr, tal como quem gosta muito de fazer outro desporto qualquer, sabe que o "bichinho" chama sempre por nós, ele é mais forte e não dá para lhe resistir. Nem o início da prova tranquilo fazia adivinhar o que nos esperava algumas horas mais à frente. Depois da partida às 04 da manhã, o tempo estava chuvoso mas ameno, o que ajudava a regular a temperatura corporal e a manter um ritmo calmo e consistente durante os primeiros quilómetros. Estas primeiras horas merecem uma nota especial, já que foi a minha primeira prova a incluir alguma corrida noturna e posso dizer que adorei. O meu gadget luminoso (do qual falarei daqui a uns tempos) superou quase todas as expectativas que coloquei sobre ele, não transformando propriamente a noite em dia, mas produzindo luz suficiente para iluminar o caminho dos atletas da frente deste pelotão (eu, o Pedro e o Daniel) e para distinguir todos os reflectores e fitas nos cruzamentos mais duvidosos. Foi bonito correr à noite. É bonito passar pelos rebanhos de ovelhas ainda adormecidos, passar pelos acampamentos dos escoteiros que nos apoiavam em algumas partes do percurso. É um quadro lindo olhar para trás e ver a serpentina de luzes que nos seguiam e desenhavam os altos e baixos da zona mais acidentada do Alentejo. E é digno de registar para sempre a altura em que as nossas vozes baixam para dar lugar aos sons do amanhecer e em que os frontais se desligam para habituar os olhos às primeiras luzes do dia. Registado! Os primeiros 30 km foram feitos a gerir o esforço do joelho direito, que ora se portava bem, ora aquecia em demasia e provocava alguma dor. E foi esta dor que começou a aparecer e me começou a estragar a prova, porque o esforço que retirava desta perna, colocava inconscientemente na outra, o que ao fim de algumas horas de corrida, se começou a traduzir numas dores enormes que já não me permitiam correr em condições. Para resumir um pouco a minha história, depois da subida até às antenas (1.100 m de altitude) e paragem no PAC 3 (obrigado às senhoras pelo delicioso bolo de chocolate), a descida pelo single track foi penosa. Eu que adoro trilhos técnicos e cheios de obstáculos, vi-me forçado a fazê-lo praticamente a andar. Depois disto, foi difícil recomeçar a correr novamente. E daqui até ao km 60, no “fatídico” castelo de Marvão (PAC 6), tenho muito que agradecer a uma pessoa... A história do Daniel O Daniel é um amigo recente feito nas corridas. É um atleta brasileiro que está em Portugal a estudar desporto e que, enquanto está por cá, descobriu no trail running um modo de gostar de Portugal e de estar na vida, apreciando uma das coisas que esta tem de melhor, que são as amizades que se fazem pelo caminho. O que ele vai fazer da sua vida ainda não sei. Com certeza ainda terá muito para aprender e para evoluir. Mas tenho a certeza que, consciente como é, aquilo que escolher fazer, não só como desportista mas principalmente enquanto Ser humano, será bem feito e eu só posso esperar estar por perto. O Daniel teve duas escolhas nesta prova: uma delas era correr o que conseguisse e assim concluir a sua prova, custasse o que custasse. A outra talvez lhe tenha custado mais, porque foi correr ao meu lado, o que implicou caminhar durante metade do percurso que conseguimos fazer. Como referi antes, depois da subida às antenas foi-me difícil recomeçar a correr normalmente. Depois de passados os primeiros 30 km, não me lembro de termos corrido mais do que 5 minutos seguidos. O esforço que recaiu sobre a perna esquerda e que compensava todo o trabalho que o joelho e a perna direita não faziam, ditou o fim antecipado da minha prova. Da minha e da do Daniel. É certo que ele poderia ter continuado a correr e me ter deixado a caminhar durante o resto do meu percurso, mas não o fez (talvez aí eu nem tivesse chegado a Marvão). É certo que depois de chegarmos a Marvão, ele podia ter continuado e tentar chegar ao fim da prova, mas não o fez. É certo que os treinos diários e duros que tem feito, como treino para participar nas provas que ainda tem pela frente, também não o ajudaram e que, conscientemente, arriscar uma lesão “só” para chegar ao fim de uma prova, quando já se fizeram tantas e outras tantas se têm por fazer é um risco que tem de ser muito bem calculado. Ele foi conservador e pelo caminho ainda me ajudou. E por isto só tenho que lhe agradecer. Agradecer os momentos de conversa, os momentos em que eu lhe dizia "Daniel, vai correr" e ele me respondia "nãaaaao"... agradecer o apoio e a ajuda positiva para me levar até onde eu conseguisse ir. É certo que o meu/nosso objectivo era chegarmos ao fim da prova, mas o objectivo maior tem de ser usufruir, divertirmo-nos e podermos partilhar "disto" muitas mais vezes. E tal coisa só pode acontecer se mantivermos um bom estado de saúde mental e física constantes. E para isso acontecer, temos por vezes que tomar decisões difíceis mas conscientes. A nossa decisão foi tomada depois dos últimos 3 km antes da chegada a Marvão terem demorado um pouco mais de 1 hora a fazer. Ainda com uma maratona pela frente de dificuldades técnicas, optámos por ficar por ali, na esperança de tudo ainda estar mais ou menos bem connosco e de podermos daqui a uns tempos usufruir da companhia um do outro numa outra prova qualquer. A história do Luís O Luís é mais um grande amigo feito nas corridas. Uma amizade feita graças a termos conhecido o Daniel. São assim construídas as ligações. A história do Luís que tenho para contar é breve, porque ele já chegou à prova com um pé em mau estado e pouco convencido em sequer alinhar à partida. Mas palavras como "vai Luís", "estamos contigo Luís" e "força amigo", juntamente com uma grande vontade de correr, lá o fizeram alinhar connosco. O Luís já provou o sabor dos 101 Peregrinos juntamente com o Daniel e veio satisfeito, por isso o desafio estaria em ver o que conseguia fazer de diferente aqui em Portalegre. Mas como disse ao início, é impossível prever o que acontece no desenrolar de tantos quilómetros, tantas horas de corrida. E o que é certo é que o pé magoado não o ajudou. Ainda eu e o Daniel lutávamos contra um ritmo que era cada vez mais lento e já o Luís nos telefonava do alto de Marvão a comer uma reconfortante sopa quentinha, de roupa trocada e pronto para seguir caminho. O desafio também não se mostrava fácil para ele, mas tal como citei uma vez num post: "o que somos baseia-se nas escolhas que fazemos a cada momento (…) Ou escolhemos arriscar e seguir em direcção ao que queremos, ou jogamos pelo seguro e escolhemos o conforto (...) No final, as pessoas têm desculpas ou experiências, razões ou resultados". E aqui todos escolhemos tentar. E ele bem que tentou e ao que parece andou dentro dos primeiros 40 primeiros lugares. Ainda saiu de Marvão, mas o pé não o ajudou e parou pouco antes do PAC 7, com cerca de 65 km cumpridos. Bravo Luís! A ti os meus parabéns por teres corrido, sofrido e parado antes de te magoares à séria. Aí não nos poderíamos encontrar na próxima. E é um prazer tentar "morder-te os calcanhares". A história do Pedro Esta é a minha história mais breve (do ponto de vista do observador) mas mais inspiradora. A que vou guardar com especial carinho e lembrar de cada vez que precisar de uma motivação adicional. Porque se a internet nos permite todos os dias lermos histórias e nos inspirarmos com os exemplos de outros, eu tive a sorte de acompanhar este exemplo de perto até ao fim. O Pedro é um grande amigo, companheiro de alguns treinos e de outras tantas corridas que também descobriu o trail running muito recentemente, apesar de gostar mesmo é das duas rodas do BTT. O Pedro foi fazer a prova um pouco por arrasto, mas claro, só se mete nestas aventuras quem quer e quem gosta mesmo muito disto. Não só de correr, mas de tudo um pouco que envolve estas corridas. E como eu gosto da companhia do Pedro, todos nós gostamos da companhia do Pedro. E sabemos que ele também gosta da nossa companhia. Da mesma forma que se criam ligações, assim se desenvolvem e se mantêm bonitos laços de amizade. A história que eu posso contar do Pedro foi a que acompanhei, de perto e ao longe. Pouco depois do PAC 2 eu e o Daniel deixámos de o ver. O ritmo estava bom, o cansaço nem batia à porta e quando o deixámos ir já o dia amanhecia. Depois de pararmos em Marvão e já ao telefone com a Ana e a Inês, que sofriam do lado de fora, sabíamos que ele se mantinha em prova e isso deixava-nos confiantes que, apesar da dureza da mesma, essa possibilidade mantinha-se. Depois da nossa história, todas as atenções caiam agora na prova do Pedro. E do que é que um ultra atleta mais precisa para ter força para chegar ao fim? Não, não são barras energéticas nem hidratos de carbono. É de apoio! Pura e simplesmente apoio humano. E passados mais de 90 km de prova, no PAC 9, o último posto de abastecimento antes da meta, lá estávamos todos ansiosamente à espera do Pedro, que chegou com dificuldades, abasteceu-se com dificuldades e partiu com dificuldades em direcção à meta. Mas decerto com uma confiança imensa de quem para chegar ao fim já tinha tido o principal "alimento" que verdadeiramente necessitava. E se é incrível correr, mais ainda é acompanhar de fora a progressão de quem corre. Mais incrível é lavarmos tudo num bom banho e numa boa refeição e ainda termos tempo de sobra para esperar por quem ainda tarda a chegar. Emocionante é ainda perceber o espírito de quem se entreajuda para mutuamente levar o companheiro um passo de cada vez mais à frente em direcção aquela meta, o sítio onde, como num filme romântico, todas as histórias finalmente se cruzam e inevitavelmente se misturam: a minha, a do Daniel que correu comigo, a do Luís que correu bem mais à frente, a do Pedro que concluiu os seus primeiros 100 kms, a do Eduardo que concluiu a prova juntamente com o Pedro e com todos os outros cujos nomes infelizmente não guardo comigo mas que fiquem certos nunca mais serão esquecidos. E da Ana, da Inês e do Vicente que foram incansáveis no apoio, nas mensagens e nos telefonemas, que aguentaram o vazio de nos verem partir às 04 da manhã, a preocupação de esperarem que tudo corresse sem problemas, a angústia das esperas intermináveis até verem o nosso nome aparecer num posto de controlo e no tempo até voltar a aparecer no seguinte... até as histórias dos que não estavam presentes mas que se preocupavam e nos apoiavam mesmo de longe. Concluindo Mais do que correr maratonas e ultra-maratonas, provas curtas ou provas longas, mais uma vez reforço a noção que eu tenho do desporto enquanto praticante amador. E porque não mesmo ao nível profissional? E porque não mesmo trazer estes exemplos para a vida do dia-a-dia? Participar numa prova desportiva não é mais, afinal, do que trabalhar para um objectivo, ou seja, estar preparado para o cumprir e, mais do que tudo, aprender com o que se faz de melhor ou pior. Não há más experiências, desde que se consiga tirar uma lição daquilo que nos acontece, como se de um ensinamento se tratasse. Eu tirei e sei que todos os que estão nesta "frequência" também o fazem, com as suas próprias histórias e experiências. E sei que, mesmo não tendo cumprido esta etapa até ao fim, mesmo tendo saído com algumas mazelas, nada me vai dar tanto prazer quanto aguardar a recuperação e voltar ao trabalho para cumprir um objectivo de cada vez, de forma realista e, acima de tudo, crescendo com as experiências que vão acontecendo ao longo deste caminho. Desculpem-me as muitas palavras, mas confesso que ainda me parecem poucas para transmitir o orgulho que sinto por fazer parte de um desporto de mantém uma essência tão bonita, num país que atravessa as dificuldades que todos conhecemos! Espero que o factor humano continue a fazer deste desporto uma forma de estar na vida, e não ao contrário. É o meu desejo. Um bem hajam a todos.