Tão cedo não me vai sair da cabeça a expressão do Armando Teixeira quando cruzei a meta em Manteigas, no passado sábado, dia 30 de maio. Sim, ainda era sábado. Acho que eram umas 10 da noite. Como começámos a correr às 6 da manhã, talvez ele pensasse que eu me tivesse perdido algures no meio da serra. Ou talvez ele não esperasse que eu chegasse ali tão cedo. Ou talvez ele não esperasse que eu chegasse de todo. Não Armando, não me perdi. Na verdade sei que estavas era muito feliz por mais um atleta ter completado os mais de 85 kms do Estrela Grande Trail. E assim ficaram todos quanto cruzaram e viram cruzar aquela meta: felizes!
Primeira etapa: quando tudo está bem
Não, o Estrela Grande Trail não teve só 3 etapas. Teve mais do que isso. Mas para mim teve 3 momentos distintos. Diz o ditado que "tudo está bem quando acaba bem... e se não está bem é porque ainda não acabou." Digamos que eu já sabia o que me esperava nesta corrida. Há algum tempo que não fazia uma prova assim tão longa e há praticamente 1 ano que não corria na Serra da Estrela. Já sabia que o desnível que a organização tinha "inventado" era mais do que muito (11.000m de subidas e descidas) e que o terreno seria difícil de aturar durante muitas horas. Seria portanto um excelente treino para o tal objetivo de Agosto: o Ultra Trail du Mont Blanc. A Serra da Estrela é muito dura para correr. Tem poucas zonas com sombra, vegetação muito rasteira, subidas e descidas intermináveis e pedra... muita pedra! Mas de manhã cedo ainda não se pensa em nada disso. Anseia-se... teme-se até, mas tenta-se desviar a atenção do pensamento das dificuldades. Já referi vezes sem conta que a organização tomou, sempre que possível, as melhores e mais acertadas decisões. Até algumas mais polémicas. E uma das melhores decisões que podiam ter tomado foi dar o tiro de partida às 6 da manhã. A Serra da Estrela é, por si só, um cenário deslumbrante. E nem mesmo as passadas ofegantes dos primeiros 10 km sempre a subir foram capazes de desviar a nossa ocasional atenção para o cenário que nos rodeava, já por cima de Manteigas, a caminho do Vale do Rossim. E se este último é bonito, o que dizer dos locais emblemáticos como a "fenda", a "nave" e todo o Vale do Loriga? Tive pena de não ter muitas vezes à mão uma máquina para registar as paisagens incríveis que se desdobravam à minha volta, mas não se diz - afinal - que os melhores momentos são aqueles que levamos na memória e no coração? Pois então... Até ao posto de controlo no Alvoco, pouco mais há, de facto, a registar. A corrida fazia-se ao passo que os trilhos me permitiam, tentando em plano e nas descidas compensar o que em subida era impossível fazer - correr - não me esquecendo de comer e beber (água e isotónico) em intervalos de tempo tão coerentes quanto possível.
Segunda etapa: quando nem tudo está bem
Nem mesmo a tão temida subida do Alvoco para a Torre (dos cerca de 750m de altitude até aos 2.000m de altitude) foram a pior experiência da prova, como eu esperava que fosse. Como se pode amaldiçoar afinal o privilégio que é subir um trilho único assim? Como se pode não gostar de, na chegada ao topo, ao fim de 2:30 horas e de apenas 7,5km decorridos, após trepar pedra após pedra e contar todos os metros conquistados, contemplar a beleza que nos rodeia, a começar pela vista e a acabar no silêncio, que só era interrompido pelo bater do coração, que quase me saltava pela boca? Tinha chegado ao topo cansado, muito cansado. Mas o vislumbre do edifício da Torre lá me fazia ir buscar forças não sei onde, para ser capaz de correr mais aquele bocadinho, até ao 5º abastecimento da prova. E ver o Catarino a aplaudir a malta que chegava ao posto de controle e a gritar por este aqui que se arrastava foi muito retemperador. Foi o suficiente para ainda ter um sorriso para registar na fotografia. Obrigado amigo! Estavam feitos 40kms, quase metade da prova. A partir da subida à Torre, a principal dificuldade estaria ultrapassada. Ou assim pensava eu. Bem nos tinha avisado o Armando que o vento fresco a soprar por cima do calor nos iria dar uma falsa sensação de frescura. Acontece que 2:30 horas a subir debaixo de sol desidrata qualquer um. E por muito que se beba, o corpo chega a uma altura que se parece com um poço sem fundo. Quando temos reservas de água racionadas, que remédio temos nós senão saber geri-las até podermos voltar a encher o depósito novamente. Nova descida (longa) e subida até Poios Brancos, onde depois de abastecer com mais líquidos, percebi que o corpo começava a rejeitar aquilo que eu tentava dar-lhe de alimento. Já não suportava as barras energéticas, os frutos secos só de empurrão e o isotónico então, nem cheirá-lo. Onde é que eu já tinha visto este filme antes? Não teria eu aprendido nada no Piódão? Em provas longas como esta (ou digamos, provas com mais de 5 horas de duração), o corpo precisa de alimentos ditos normais, pois começa a rejeitar os alimentos doces e a pedir uma base salgada, tal é o sódio e sais minerais que já perdeu com tanto esforço e transpiração. Mas se os géis energéticos e algumas barras ainda são toleráveis, já percebi que, por exemplo, isotónico em demasia acaba por enjoar, provocando o tal efeito de "fechado para obras". Assim, aproveitando este posto de líquidos e tendo em conta que daqui até ao próximo abastecimento seriam uns longos 15 kms, despejei o resto de isotónico e fiz-me valer das pastilhas de sal e de umas saquetas de bicarbonato, que sabem mal como tudo, mas que fazem milagres em casos de desidratação. Com esta ajuda e continuando a forçar a ingestão de frutos secos e uma barra comida aos bocadinhos, cheguei como podia ao Vale da Amoreira, onde passei então à terceira etapa da prova.
Terceira etapa: daqui até ao fim
O que é que o corpo precisa para retemperar forças? Alimento. Mas alimento normal. E o que é que havia no abastecimento do Vale da Amoreira? Massa, arroz, bolonhesa... minis! Com uma vontade quase nula de continuar, mas com a noção de que tudo aquilo estava a ser provocado por alguma insensatez da minha parte no que à alimentação dizia respeito, comi com vagar um prato de arroz com bolonhesa, acompanhado por uma bela mini fresquinha, seguindo-se uma sobremesa a fazer lembrar os meus tempos de infância: banana com queijo e marmelada. Depois de rematado tudo isto com um café, fiz-me à estrada. Esperava-me a última grande subida do percurso, com quase 900m de desnível, portanto era bom que eu tivesse forças para a enfrentar. E tive. Assim que passaram as primeiras dezenas de minutos a correr, o alimento finalmente despertou-me o corpo e deu-me um novo alento. Aplicando a melhor concentração que fui capaz, "encaixei" uma cadência de passada curta e certa para a subida e cerrei os dentes para tentar não sair daquele ritmo. A falta dos bastões fez-se sentir. Já se tinha feito sentir na anterior subida à Torre e agora também nesta. Mas afinal os treinos no ginásio servem para quê? Foco e concentração na posição corporal, não deixar vergar as costas na tentação das maiores inclinações e passado um pouco (e talvez um pouco mais que isso) a subida chegaria ao fim. E depois nova descida, paragem rápida para novo abastecimento de líquidos, onde voltei a aplicar a técnica do "não ao isotónico, sim à água com bicarbonatos"... e de novo na estrada para a última subida da prova. Sim, mais uma. Mas o que eram agora 400m de desnível comparado com o que já tínhamos deixado para trás? Sem problemas, bastava manter o foco e a concentração e não fazer asneiras, que a prova estaria feita. Asneiras sim, pois a esta hora já o sol dava lugar à noite e a visibilidade difícil ficava dificultada pelo cansaço que se fazia sentir desde há muito. A última hora de prova foi feita já de frontal na cabeça, para não arriscar uma queda parva, nem perder-me numa curva à esquerda, quando deveria ter sido à direita. Nada aconteceu. Tanto de dia como de noite, a sinalização do percurso esteve sempre ao melhor nível. Mais um ponto a favor de uma organização quase sem falhas. E apesar da meta parecer que nunca mais chegava, ela lá estava conforme programado, capaz de me arrancar as últimas forças e de me fazer correr - sei lá eu bem como - aquelas últimas centenas de metros pelas ruas de Manteigas, como se não tivessem estas pernas acabado de correr mais de 85 kms na Serra da Estrela. Custa... pois custa. Mas quem chega ao final de um desafio destes conhece os pequenos prazeres de nos vermos muitas vezes em apuros e ter o discernimento para saber como ultrapassar a situação. Ou pensar tantas vezes em desistir (será desta?) e reprogramar a cabeça para ir pela via mais difícil, a de continuar. Disto se vive no trail running e disto se aplica quem sabe até no dia-a-dia. Finalmente, a toda a equipa da Armando Teixeira Outdoor Events, a ele próprio pelo esforço e pela humildade, ao Telmo e ao Catarino pelo apoio e omnipresença, ao Carlos, ao Paulo, Henrique e João, ao Rodrigo, também à Salomon - Suunto, àqueles por quem passei durante a prova e não falei, aos outros que sei que estavam lá mas não vi, a todos os outros que não conheço mas que sei que se divertiram tanto ou mais do que eu, fiquem sabendo que vocês foram as maiores estrelas da Serra da Estrela. Um grande bem hajam pelo bonito dia que passei a correr. Venham mais assim!