Na gaveta onde guardo o meu material de corrida há, entre outros acessórios, 2 mantas térmicas. Não há... havia. Deixei uma delas em Miranda do Corvo, nos Trilhos dos Abutres, no passado dia 30 de janeiro. Serviu para me manter quente no posto de vigia da serra da Lousã, a quase 1.000m de altitude, enquanto não chegava a boleia que me ia levar de regresso ao local de partida da prova. Pela segunda vez desde que comecei a correr, não completei uma prova. A primeira foi há uns anos, nos 100km de São Mamede, por causa de uma pancada no joelho. Desta vez foi o calcanhar. Uma fasceíte plantar mal curada. Mas, mais do que ficar triste com este final, hoje sei que foi a decisão mais acertada que poderia ter tomado. Sim, ainda os Trilhos dos Abutres. Pode não ser a maior. Nem a mais dura. Mas esta prova tem alguma coisa muito especial, algo que a faz ser relembrada praticamente ao longo de todo o ano. Afinal, não é à toa que foi eleita a melhor edição de prova de Trail Running em Portugal, na iniciativa do blog Correr na Cidade: Os Melhores da Corrida 2015. Não vou dizer que nada indicava que isto não me fosse acontecer. O início da prova correu-me muito bem, com um ritmo muito estável e as forças a não faltarem nas zonas mais técnicas e nas subidas mais íngremes. Mas confesso que comecei logo no início a sentir uma ligeira sensação de desconforto no calcanhar. Nada de mais. Nada que não me tivesse permitido correr noutras provas antes, ou em treinos. Aliás, nada que não me permitisse ter corrido durante 40 horas no UTMB em agosto. Post relacionado: 10 coisas que aprendi a correr no UTMB O problema das lesões é que, quando não curamos bem uma pequena dor, o mais provável é que esta evolua e se torne em algo mais grave. Mas os tais desconfortos sentia no calcanhar, não passaram disso mesmo durante todo o início da corrida. E tudo parecia estar assim relativamente controlado. Quem me conhece sabe como eu gosto de me divertir em trilhos como estes da serra da Lousã. Trilhos muito técnicos, estreitos, com sucessivos "golpes de rins" para nos desviarmos de todo o tipo de obstáculos. E saltos! Saltos por cima de troncos, rochas, ribeiras e desníveis abruptos, que tanto podem resultar numa aterragem num solo lamacento e mole, como numa superfície rochosa e dura. Ou em quedas! São trilhos do mais bonito e divertido que conheço. Mas este tipo de diversão resulta em impacto, o tal que não perdoa às dores mal curadas. Depois do abastecimento no Santuário da Nossa Senhora da Piedade de Tábuas a situação piorava a cada minuto. As dores no meu calcanhar tornavam-se mais agudas. E cada km que progredia era feito cada vez com mais dificuldades e, consequentemente, mais devagar. O resultado é que, aos 35km, correr tinha-se tornado praticamente impossível e a dor no calcanhar tornava a tal decisão que nunca ninguém gosta de tomar praticamente inevitável. E foi aí mesmo, em plena ascensão ao Parque Eólico, que tomei a decisão de desistir da prova no posto de vigia, onde ficava o 4º posto de abastecimento. Mesmo assim foram 2km difíceis, numa zona desabrigada e com o vento a soprar cada vez mais forte. Para não deixar o corpo arrefecer, vesti o corta vento, calcei as luvas e encaixei o melhor ritmo de caminhada que consegui. Depois de chegar ao abastecimento e de dar o meu nrº de dorsal, embrulhava-me na manta térmica e pensava no que poderia sentir a seguir. Frustração e tristeza? Nada disso. Não fiquei triste. Claro que não pude deixar de sentir aquela pontinha de angústia ao ver os outros cortar a meta. Mas o sorriso de felicidade que todos traziam eram sorrisos de conquista, de missão cumprida. E, no final das contas, também eu consegui cumprir a minha missão, que é, sempre que possível, usufruir o melhor que posso daquilo que estou a fazer e acabar com saúde e vontade para fazer mais. Caso tivesse tentado continuar a correr, só poderia ter resultado em algo mais grave. De facto, nestas situações, a única e melhor decisão que podemos tomar é proteger nossa saúde. Foi o que fiz. Hoje, já depois do diagnóstico e dos exames feitos, há que avançar para o tratamento. Mais uma meta para chegar ao novo objetivo: a cura. Se vai implicar deixar de correr? Sim, certamente. Mas o mais importante é manter o foco no passo seguinte, necessário para poder voltar a fazer o que tanto gosto o mais rapidamente possível. E nas melhores condições. E sem tristezas. Afinal, há tantas outras coisas que posso fazer. Posso voltar a nadar, posso focar-me ainda mais na preparação física no ginásio, posso andar de bicicleta. É como diz um provérbio chinês: "o magnífico não está em nunca cairmos, mas em sabermos levantar-nos quando caímos".