Quero começar por dizer que este relato foi iniciado (pelo menos estruturado) algures ali entre o Cabo Espichel e a Aldeia do Meco, entre os 25 km e os 28 km de corrida, mais ou menos onde eu e o meu amigo Luís Trindade começámos a amaldiçoar correr na areia. Aqui há menos de 1 mês questionava num post o que é que leva alguém a correr uma distância como 100km. Pois bem, ontem participei com uns amigos no 2º Ultra Trail de Sesimbra, na distância de 50km, organizado pela experiente Associação O Mundo da Corrida. Fiz pela primeira vez metade da distância do objectivo que meti na cabeça alcançar este ano. E porque é que decidi correr 100km este ano? Talvez pela mesma razão que no ano passado (o meu primeiro ano de corrida) tinha metido na cabeça correr uma maratona. Tudo bem, quem me conhece sabe que sou um bocado teimoso, mas a verdade é que, teimosias à parte, quando se quer muito uma coisa, faz-se por a atingir. E até tenho treinado! Treinei para que os Trilhos do Almourol me corressem bem (e de facto assim correram) e treinei para que este 2º Ultra Trail de Sesimbra me corresse pelo melhor. E afinal de contas, sentia que o corpo estava preparado. Mas e a cabeça? Estaria essa preparada para fazer face ao desafio? O processo mental Ontem tudo girava à volta do tempo e da distância. Depois de ver as últimas reportagens da Marathon des Sables (além de sonhar permanentemente com paisagens como as do UTMB - Ultra Trail du Mont-Blanc), dei muitas vezes por mim a pensar não só nas distâncias que aqueles atletas correm, mas nas condições em que as fazem. É aí que me remeto para estes pequenos passos que são necessários até alcançar o nosso próximo grande objectivo. E, se pensar bem nisso, a corrida de ontem foi, de facto, um pequeno mas importante passo. Correspondia a metade daquilo que é correr 100 km e seria na verdade a primeira vez que iria correr 50 km, uma óptima oportunidade de fazer um outro tipo de treino: o de controlar alguns aspectos para os quais quase nunca nos lembramos de treinar e que frequentemente resultam em alguns erros, como por exemplo preocuparmo-nos demasiado com factores que não podemos controlar e descurarmos pequenos pormenores que, ao fim de algumas horas de corrida, podem fazer toda a diferença. A corrida Como tem sido apanágio das últimas corridas, o ambiente não podia ter sido melhor: a companhia do grupo de amigos fazia toda a diferença no processo de descontracção (as gargalhadas na noite anterior também) e as caras conhecidas no local da partida, que sabem sempre bem encontrar, davam aquele toque de inspiração e motivação necessários para nos sentirmos confiantes de que temos tudo do nosso lado para apreciar as horas que temos pela frente. Dado o sinal de partida, mantivemo-nos sempre juntos durante os quilómetros iniciais, que começaram com um colossal engano dos atletas da frente, pois metendo por uma rua errada e tendo de voltar para trás, nos remeteram a nós (novatos) para os primeiros lugares da corrida durante os minutos iniciais da mesma... sensação de poder!!! Depois de percorrermos toda a marginal de Sesimbra e a zona do porto, sempre junto ao mar, iniciou-se o processo de selecção natural. As primeiras subidas geriam-se a um ritmo lento, com muita conversa à mistura e boa disposição entre todos. Recordo-me de ter comentado com o Luís, enquanto subíamos uma escarpa bem íngreme, que só se ouvia conversa e muitas gargalhadas atrás de nós, o que por si só demonstra o ambiente que se respira nestas provas. E foi o Luís que incansavelmente me acompanhou do início ao final da prova. Prova que pode ser separada em dois momentos: a primeira parte (mais técnica) e a segunda parte (mais rápida e com poucos momentos técnicos). Eu, sem dúvida, identifico-me com provas mais técnicas. Gosto de correr em terrenos irregulares e de saltar obstáculos, como por exemplo, a zona inicial perto da pedreira, com declives cheios de cascalho escorregadio a tornar altamente instáveis mas muito divertidos todos os passo que escolhíamos tomar. E esta vertente sul é sem dúvida uma das zonas mais bonitas da Serra da Arrábida, com terreno muito irregular, muitos declives e aclives íngremes, que deixavam sempre uma pontinha de surpresa para as paisagens cada vez mais dignas de contemplação que se abriam e fechavam à nossa passagem, de falésias e praias de águas límpidas lá em baixo a convidar a uns banhos demorados. Mas não era esse o objectivo e, se desse lado da serra o tempo convidava, já perto do Cabo Espichel começámos a sentir o vento forte e a alguma chuva que nos acompanhou nalgumas partes do percurso. E nesta parte começou o percurso mais rápido, com estradões já com alguma areia a descer até à... praia! Aqui foi mau. Não foi a parte pior, mas foi suficientemente desgastante, principalmente para quem não tem paciência para ver que o fim nunca mais chega. A forma mais fácil de descrever é tentarem imaginar uma recta de areia fofa com 3 km de extensão, na qual só se consegue dar metade da passada normal e onde, ao fim de algum tempo, chegamos à conclusão que não adianta mesmo forçar. A forma mais fácil que encontrámos para correr foi a pisar as pegadas deixadas pelos atletas que já passaram e encontrar um esquema de "ora agora corres tu à frente, ora agora corro eu", porque a areia pisada é mais dura e acaba por ser a única forma de, ao fim de 1 ou 2 km, não sentirmos tanto a fadiga nas pernas, glúteos e costas! É terrível... mas gostoso! Sim, aprendem-se sempre lições interessantes. A partir daqui veio a parte mais rápida da prova, entrando o percurso no meio do mato, com um pouco mais de 12 km de estradões ávidos de corrida em passo largo e rápido. Isto, claro, para quem ainda os aguentava dar. Uma observação importante para a parte final desta zona do percurso, que contempla pouco mais de 1 km de passagem dentro da pedreira que, para mim, representa um cenário dantesco num local tão bonito como é a Serra da Arrábida. Nota positiva para o percurso - nota negativa para esta "obra". O "senhor do martelo" A partir daqui poderíamos falar num "passeio no parque", já que até ao final da prova restavam menos de 10 km e somente 2 subidas. Mas para mim foi (posso dizer) um sacrifício. Talvez o facto de ter puxado um pouco demais nos 3 km de areia tivesse contribuído para algum desgaste acumulado. Talvez o facto de não poder mais olhar para as saquetas de gel energético (já lá iam 4, fora o resto), nem para as marmeladas, nem para as bananas, tivesse a dar cabo das minhas reservas energéticas... e talvez os amendoins estivessem a fazer das suas a nível intestinal... o facto é que, como diria o Luís, o "senhor do martelo" acompanhou-me durante uns bons quilómetros e, insistentemente, martelava-me a cabeça com pensamentos tristes, o estômago com nós e enjôos e, consequentemente, tirava-me as forças que me restavam para enfrentar subidas e resistir a descidas. Aqui só tenho a agradecer aos artigos que tenho lido sobre mentalização, motivação e pensamento positivo, aos conselhos de amigos e conhecidos e ao companheirismo do Luís Trindade que, se numas alturas se distanciava, noutras lá estava a espreitar para ver onde e como é que eu me estava a sentir. E entre palavrões e outras palavras de incentivo, lá nos juntámos novamente no posto de abastecimento final, no alto da última subida, dentro do Castelo de Sesimbra. Juntos até ao fim E é disto que se faz o companheirismo. Saídos do Castelo de Sesimbra pela calçada, descendo mais ou menos com as pernas que ainda nos restavam rumo à marginal, ainda me lembro dos palavrões que soltámos no meio de "quase-gargalhadas", quando constatámos que o final da prova nos brindava com um passeio na praia... sim, mais areia! Como gosto de pensar que gostamos de aceitar desafios, foi com tranquilidade que aceitámos este desafio final e nos fizemos à estr... à areia, rumo à meta! E foi na meta que nos esperavam os amigos do início, as palavras de apoio e uma surpresa especial: a namorada "recém-speaker" que anunciava a chegada de mais aqueles dois ultra-maratonistas e o final de mais uma prova superada! E é deste tipo de companheirismo que se fazem provas de trail, ou pelo menos aquelas que gostamos e que abordamos nas nossas conversas, aquelas que se têm nos emails, nas redes sociais e pessoalmente, as que nos fazem esquecer do passar das horas durante provas como esta. É deste companheirismo que se fala quando se apertam as mãos e se deixam "apalavrados" novos e mais altos vôos do que aqueles que hoje mal sabemos conseguir tocar. Porque parece que de repente encontramos outras pessoas que, como nós, sentem que se não sonharmos alto não iremos a lado algum. E assim resta-nos ir sonhando, colocando datas nos sonhos e ir alcançando aos poucos esses novos objectivos que já se cheiram no horizonte. Para já, os 50 km estão concluídos, venham os 100 km!
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4 comentários
Jakeline Gurak
17.04.12
Nossa essa sua página tornou-se parte dos treinos...cada vez que leio algo aqui vejo-me mais motivada. PARABÉNS!
Obrigado pelo apoio Jackeline! Na verdade isto é aquilo que gosto de fazer: praticar desporto e escrever sobre o que isso me faz sentir! Como dizia um saudoso brasileiro que foi meu ídolo de juventude: "- Há um grande desejo em mim de sempre melhorar... melhorar. É o que me faz feliz... TREINAR... TREINAR... TREINAR..." ;) Continua a treinar e mantém-te focada nos teus objectivos... e continua a aparecer por aqui, serás sempre bem vinda!