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Ex-Sedentário - José Guimarães

A motivação também se treina!

08.04.18

Correr, trabalhar e meditar


José Guimarães

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O escritor, editor, aventureiro e explorador Erling Kagge disse que "não é preciso muito para entender o silêncio e o modo como podemos ter prazer em desligarmo-nos do mundo (...) é algo que o coração sempre soube".

 

Falar sobre as coisas do coração é uma tarefa difícil. Tal como quando tentamos captar numa simples fotografia a beleza de uma paisagem que se abre à nossa frente, também é difícil traduzir por palavras aquilo que num momento especial sentimos dentro de nós. Dentro do nosso silêncio. "As palavras geram limites", diz Kagge. E soa um bocado a desperdício falar sobre aquilo que não se consegue falar. Parece que estraga o momento. Como quem diz que é impossível e totalmente inútil correr contra os limites da nossa linguagem.

 

Mesmo assim, vou arriscar e tentar descrever o que é este prazer que me invade quando, além de trabalhar, também corro. E, quando ao correr, também medito. E, quando ao fazer tudo isto, encontro a forma certa de afastar o meu cérebro da rotina do caos e de lhe dar o caminho para se poder reencontrar novamente.

 

No mundo em que vivemos, tão cheio de distrações, torna-se muito fácil desfocarmo-nos de quem somos, ou de quem gostamos de ser. Claro que todos teremos os nossos afazeres, as nossas bocas para alimentar e os sacrifícios que daí advêm. Mas num mundo cada vez mais poluído por tanta coisa que, se formos ver bem, não necessitamos, é importante relembrar que um dia chegaremos ao tal momento em que vamos olhar para trás e perceber que, ou fizemos, ou deixámos por fazer aquilo que mais desejávamos fazer. Como subir a uma montanha. Ter um filho. Velejar através do oceano. O que for. Não o fizémos porque nos deixamos levar por outras coisas que não interessavam. Por ruído.

 

Isto leva-me de volta ao início dos meus tempos nas corridas, recordando que comecei a correr porque a vida que levava antes não me fazia muito sentido. Dessa forma, um dia experimentei e conscientemente optei por começar a fazer mais vezes as coisas que sentia que me traziam felicidade e me levavam para longe do tal caos. Essa felicidade traduzia-se simplesmente em deixar-me ir e não pensar em mais nada a não ser naquele momento. Um momento em que me desligava do mundo. Não no sentido de não me interessar o que nele se passava, mas um desligar no sentido de me sentir como se fizesse parte das coisas que, naquele momento, mais importavam e que podiam ser as mais simples: o nascer do sol, o vento fresco na cara, o cheiro do mar. Ou o som do meu coração a arfar enquanto subia uma colina. Sim, correr trouxe-me desses momentos. De uma forma um tanto ou quanto inesperada, trouxe-me momentos em que podia estar comigo próprio, com os meus pensamentos mais íntimos, ou até sem pensamentos de todo. Trouxe-me o silêncio que eu necessitava e a capacidade de perceber onde me sinto bem.

 

Quando as coisas se começam a ligar, naturalmente surgem as inevitáveis analogias. Se trabalho naquilo que gosto, sinto-me como se não estivesse a trabalhar de todo. É como quando corro. Pode estar a custar, mas o prazer que advém daquele momento é maior do que qualquer esforço físico que esteja a fazer. Não sinto que esteja a fazer um sacrifício e faço-o com prazer. E isto faz-me sentir em sintonia. E em paz comigo próprio. Comigo e com o que me rodeia. E esses são para mim os meus momentos de meditação. Os momentos em que me permito descobrir os verdadeiros cantinhos de mim próprio.

 

Esta não é uma fórmula mágica. Duvido que esta exista, até. Felizmente, certamente cada um terá a sua forma de a encontrar e de se encontrar. É importante que cada um descubra o seu próprio Caminho. O meu começou a correr. Só temos que experimentar e escutar o coração!

 

O excerto inicial retirado do livro "Silêncio na Era do Ruído", de Erling Kagge, recomendado pelo meu amigo Pedro Guedes, alpinista e instrutor na empresa Espaços Naturais, durante a expedição que fizemos ao Toubkal na semana passada.