Seg | 22.04.13
Na corrida não há distâncias
José Guimarães
Paradoxo? Talvez. Na semana passada alguém me disse que no trail running não havia distâncias. O contexto era claro. Esse “alguém” sugeriu-me que abandonasse o tratamento na terceira pessoa. Nada que me cause urticária. Nesta comunidade que é a dos corredores, sou a primeira a dizer “posso tratar-te por tu, certo?”. Mas, neste caso específico, a iniciativa do tratamento na terceira pessoa havia sido minha, já que se tratava de alguém muito respeitável que faz provas de 50 km com 3.000 metros de desnível acumulado em 5h35. Tinha mesmo que fazer uma abordagem com muito respeitinho. Adiante. Agarrei nestas palavras e converti-as no título deste texto. E já irão perceber porquê. O meu último texto publicado neste blogue relatava a magnífica experiência dos meus primeiros 50 km em Sesimbra e foi redigido e publicado a 15 de abril pela manhã. Muito longe de imaginar o que viria a acontecer umas horas mais tarde em Boston. No dia seguinte uma citação que poderia ser interpretada de mil e uma variadas formas remeteu-me para a imprevisibilidade dos acontecimentos do dia anterior: “life is too short and unpredictable not to live it exactly as you please”. Decidi várias dezenas de coisas depois de a ler. Mais tarde cruzei-me com um texto da autoria de alguém que se auto-intitula “Dimity”, que traduzia tudo aquilo que sentia e estava incapaz de concretizar em palavras. Não sendo adepta de calcar e recalcar tragédias humanas, tinha mesmo que escrever duas palavrinhas sobre o assunto. Assumindo que quem me lê são pessoas mais ou menos apaixonadas pela corrida e que conhecem as maravilhosas sensações ao cruzar-se uma meta – seja de 5 km, 10 km ou 42 km – escuso de me perder em palavras para descrever o que senti, já que presumo que tenham sentido exatamente o mesmo. Adicionalmente, mesmo recorrendo a uma extensa lista de cerca de 435.00 verbetes (verbetes são as palavras que possuem significado no dicionário da língua portuguesa), dificilmente se exprime o turbilhão imenso que corre por dentro quando confrontados com este tipo de notícias. Tal como escrevia a “Dimity”, autora do belíssimo texto “Boston Marathon: Undone”, somos bombardeados diariamente com notícias tristes, trágicas, devastadoras. Todas elas nos tocam de alguma forma. Mas esta… esta, nós, os corredores, estando ou não em Boston, sentimo-nos lá dentro. Naquele cenário. Ou porque já terminámos uma maratona e conhecemos o ambiente de festa que se vive. Ou porque já tivemos a nossa família a aplaudir-nos nos últimos metros. Ou porque corremos maratonas em 4h00. Ou porque… porque simplesmente já nos aconteceu tudo isto em simultâneo, como é o meu caso. Questionamo-nos sobre como é possível atacar uma comunidade tão pacífica quanto esta. Uma comunidade onde de facto não há distâncias. Não há raças, não há credos, não há tratamentos na terceira pessoa. Não há idades, senão nos escalões previstos nos regulamentos. Não há distinção entre homens ou mulheres, senão nas tabelas classificativas. Há corredores. Que correm. Que adoram correr. Que se deslocam sós ou em grupo, com um sorriso nos lábios ou com a expressão de sofrimento, com a certeza de que, no final, o sentimento de satisfação e “dever” cumprido compensará todas as cãibras, tendinites e outras dores em geral. Mesmo aquelas que não têm registo de existência nos manuais médicos. Voltando a Boston. Não adianta tentar encontrar respostas para um ato desta natureza. Não pode haver um racional por detrás de uma atrocidade destas. São monstros, não é gente. Para os que ficaram e perderam os seus familiares ou amigos queridos, inicia agora o processo de cura. Não sei como nos curamos de algo assim, mas desisti de tentar “walk on their shoes”. Duvido que conseguisse lidar com tanto sofrimento assim. Os que ficaram e foram física e psicologicamente afetados terão que provar que tudo é possível. Terão que o fazer para continuar a viver. Entretanto ontem em Londres já decorreu a mítica prova 42 K daquela cidade. E, com as devidas homenagens, foi uma festa da corrida, dos corredores e de todos os que os apoiam. Outros corredores por esse Portugal e mundo fora dedicaram os quilómetros palmilhados a quem perdeu a vida a 15 de abril. A página oficial da Maratona de Boston já anuncia, e bem, a realização da prova em 2014 e nós… nós continuaremos a correr. Porque somos corredores. Termino como comecei. Com palavras que não são minhas, mas nas quais acredito tanto quanto todos os metros que já corri: "if you’re losing faith in human nature go out and watch a marathon". Quem o disse foi Kathrine Switzer. Dispensa apresentações.