O UTMB: o que é e a que sabe correr na montanha
Fotografia: Pau Storch
É difícil não recordar aquela música. "Conquest of Paradise" é um título que não podia ser mais certeiro. Aquela melodia inspiradora deixa-me ainda hoje com a pele arrepiada. A temática da conquista levava-nos naquele dia - embora ainda sem percebermos bem o que nos ia acontecer - a viajar para algum locais que muitos iriam explorar pela primeira vez. Não sei se seria aquilo o paraíso mas, com toda a certeza, seria algo muito próximo dele, como vim a perceber mais tarde.
Não sei se vou conseguir descrever em pormenor toda a prova. Até porque foi grande: estamos a falar de mais de 41 horas de duração, espalhadas ao longo de 168 km. Vou fazê-lo em várias partes e, caso queiram que eu descreva alguma coisa mais em pormenor (como é passar dois dias sem dormir, o que é que comi durante a prova, que vestuário e equipamento usei, etc.) peçam-me e terei todo o prazer em fazer um post sobre isso, sem nenhum problema.
Recordo-me dos acontecimentos aos flashes. Talvez porque parte de mim ainda hoje parece correr por aquelas montanhas fora, mesmo que só durante os sonhos. Recordo-me do Paulo ali ao meu lado na partida e da confiança que eu, simples novato, depositava nele. E provavelmente da confiança que ele depositava em mim e que eu teimava em não acreditar. Recordo-me do rugido do helicóptero que filmava os atletas, muitos deles - eu incluído - ansiosos até mais não. Recordo-me da chuva que caía vertiginosamente, como que a querer estragar-nos a festa. Recordo-me ainda da contagem decrescente feita em uníssono, encaixada cirurgicamente naqueles segundos de banda sonora que, minutos antes do início da prova, já saía dos altifalantes espalhados um pouco por toda a cidade de Chamonix, que neste dia parava para ver os atletas partir. Eram cerca de 2.300 que, de mãos no ar e já ensopados, partiam no dia 29 de Agosto com um sorriso estampado no rosto.
Aquele foi o fim de semana que vai ficar para sempre gravado na minha memória como aquele em que parti para a conquista de um sonho: correr pela primeira vez na montanha, correr nos Alpes, correr no UTMB - Ultra Trail du Mont Blanc.
Recordando um post antigo: Ultra objetivos
Apetece-me começar - e acho que vocês vão compreender porquê - por falar da primeira vez que fiz um trail e das primeiras vezes que, vendo imagens do UTMB e das corridas nas montanhas, partilhava com amigos a vontade de um dia poder experimentar aquilo que então me deixava de boca aberta de espanto. Como era possível existirem na Terra lugares assim tão bonitos? E como era possível alguém correr ali?
Vivi com o trail running uma paixão à primeira vista e, aqui em Portugal, à primeira corrida. Recordo vezes sem conta o quanto me tocou a presença do Carlos Sá (himself) quando chegámos em último lugar à meta da primeira e mal preparada incursão na Serra d'Arga. Talvez ele tenha sido por isso um dos grandes responsáveis por me ter apercebido logo desde cedo que, no trail running, reina acima de tudo um espírito muito característico de comunhão, não só uns com os outros, mas também com o ambiente que nos rodeia, com a natureza, afinal de contas, com o nosso habitat, tal e qual como ele é (ou deveria ser). E tudo isto se percebe desde cedo numa prova como o UTMB.
Desde a preparação da prova, a eficácia na gestão das milhares de pessoas (atletas e acompanhantes), mas principalmente a sensibilização para cuidarem daquilo que não é deles, mas que a eles que também toca a responsabilidade de manter. Em tudo, o UTMB cheira a uma prova perfeita e sem falhas. É, afinal de contas, uma corrida épica, longa e dolorosa. É uma corrida na montanha e, como tal, há que saber ao que se vai e estar preparado para tudo o que possa acontecer.
O início da corrida
Logo desde o início, a minha prova estava mais do que pensada. O ritmo - já acordado com o Paulo - seria bem lento desde o início, tentando não puxar muito pelas pernas, mas também sem provocar os tempos limites de fecho dos postos de abastecimento.
Com chuva desde a largada, não havia casaco impermeável que resistisse. Depois de uns quilómetros relativamente planos, passámos por Les Houches tranquilos e sem parar, já que estávamos abastecidos e não tínhamos necessidade nenhuma de combater a multidão de atletas que estavam nas enormes mesas a recolher líquidos. Logo depois viria a primeira subida: Le Délevret.
O ritmo que planeámos para a prova teria de ser suficientemente forte para não ultrapassarmos os tempos de fecho dos postos de controle, mas suficientemente conservador para não esgotarmos cedo demais as reservas de energia. E se em terreno plano ou a descer iríamos querer correr tanto quanto nos fosse possível, nas subidas a estratégia foi adoptar um passo de caminhada, contando com a ajuda dos bastões para manter um ritmo o mais forte e consistente possível.
Uma corrida mítica como o UTMB conta não só com uma organização exemplar, mas também com o apoio do público que incessantemente aplaude e grita palavras de incentivo ao longo de todo o percurso. Se depois do primeiro banho de multidão em Les Houches me senti animado, nesta primeira subida não posso deixar de recordar o momento em que, uma senhora japonesa, ostentando um cartaz com caracteres que não sei decifrar, oferecia gomas numa bandeja enquanto gritava: "HARIBO!!! HARIBO!!! HARIBO!!!"... é isto o UTMB e seriam gestos destes que, mais tarde, em momentos de maior fraqueza, poderiam marcar a diferença.
A chegada a Saint Gervais foi apoteótica, digna de registo. Era o primeiro posto de controle. Como o tempo de corte da prova era às 21h30 e tínhamos chegado a pouco menos de 1 hora do mesmo, decidimos não demorar muito mais e tentar chegar rapidamente a Les Contamines, o primeiro posto onde sabíamos que íamos ter a nossa assistência à espera pela primeira vez. Foram 10 km feitos sempre debaixo de chuva, com a agravante de termos a primeira noite a cair, mas ainda sem qualquer ponta de fome ou sede que nos pudesse tirar a vontade de correr. E tanta era a vontade de chegar a Les Contamines, que nem o terreno lamacento, escorregadio e já mal iluminado pelo fim do dia, nos fez parar para montar os frontais. Em vez disso, foi a luz dos outros corredores que nos iluminou os trilhos.
Primeiro posto com assistência. E lá estavam a Inês, o João Nuno e toda a família, a postos para darem algum alento a estes dois atletas completamente ensopados. Foi a primeira paragem mais prolongada, onde aproveitámos para comer alguma coisa mais consistente, que não fosse gel energético ou as gomas Haribo que ainda me sobravam nos bolsos dos calções. A opção daqui para a frente seria comer sempre uma sopa carregada o mais possível com massa, beber café ou chá e uma ou outra coisa sólida como queijo e bolachas salgadas. Esta seria a estratégia a reter até ao fim e iria fazer toda a diferença para enfrentar as tiradas de maiores horas ou as subidas mais difíceis. Em Les Contamines ainda chovia e, como já tinha a tshirt ensopada por baixo do impermeável, optei por vestir uma primeira camada mais quente e de manga comprida que trazia na mochila, para então seco e revigorado estar mais capaz de enfrentar a noite fria e em altitude. Iríamos agora fazer uma das maiores subidas da prova, com cerca de 1.350m de desnível até Croix de Bonhomme, a cerca de 2.500m de altitude.
A 1 hora do fecho do posto de controlo, lá nos fizemos novamente ao caminho. E a subida começava em Notre-Dame de la Gorge. Feita sempre em pedra, é de tal maneira concorrida que o Anton Krupicka a descreveu como uma subida ao género da Tour de France: muito íngreme e com pessoas de ambos os lados a aplaudir e a puxar pelos atletas. Daqui para a frente e já pela madrugada dentro, havia que gerir bem o esforço, os tempos de passagem pelos postos de controlo e progredir o melhor possível entre os abastecimentos.
O meio da corrida
Não sendo ainda bem o meio da prova (este seria ao km 77, em Courmayeur, Itália), creio que registei mentalmente a chegada ao Col de la Seigne como sendo o final dessa primeira metade psicológica. O dia amanhecia, depois da primeira noite passada a correr por terras francesas. Por muito que possa tentar ser descritivo, creio que conseguirei dizer muito pouco que seja capaz de fazer juz à tamanha beleza que é assistir ao nascer do sol em Col de la Seigne, a cerca de 2.500m de altitude, com o Mont Blanc visto agora do lado de Itália, encaixado numa paisagem de cortar a respiração. Depois de recebermos os bons dias das autoridades italianas e de nos terem novamente "scannado" os dorsais com chip, muitos foram os atletas que pararam para tirar uma foto, para filmar, ou somente para se sentarem à beira do caminho em pura contemplação, virados para o vale ladeado de montanhas e glaciares, onde se situava o próximo posto de controle, 500m mais abaixo: Lac Combal. Lembrei-me tanto mas tanto do Caminho de Santiago que ainda não fiz... ou será que já o estava a fazer aqui?
Depois da descida ao posto de controle de Lac Combal, aproveitei para reforçar a dose de comida (apesar de serem sempre as mesmas coisas, chamemos-lhes a esta hora o pequeno almoço) enquanto aguardava pelo Paulo, que vinha uns minutos mais atrás, na companhia de outro amigo português, o Zé (bom nome este). Como eu estava um pouco mais adiantado e tinha algo a chatear-me - e a arder terrivelmente - na planta do pé (seria uma bolha?), disse ao Paulo que ia andando e esperaria por ele em Courmayeur, onde queria chegar o mais rapidamente possível, para trocar de roupa, tratar do pé e comer calmamente. Despedidas feitas, a partir daqui concentrei-me em fazer a minha corrida, quer sozinho, quer na companhia esporádica de um ou outro companheiro de corrida feito no momento, de uma qualquer nacionalidade que fosse... e tantas que haviam por ali.
Depois de um trilho lindíssimo a contemplar todo o Vale Aosta, a descida até Courmayeur parecia não ter fim. O que começou a cerca de 2.400m de altitude, só terminou aos 1.200m. Só neste trecho, o Suunto registou 1.200m de desnível... negativo, tendo demorado cerca de 2 horas para fazer 10 km (com um posto de abastecimento intermédio pelo caminho).
E no final, não poderia haver melhor tratamento para uns quadricípedes doridos do que chegar ao posto de controlo, ter a Inês à espera com o saco da roupa limpa e ser "apaparicado" com mimos dignos de um atleta de elite.
A base de Courmayeur deu-me tempo mais do que suficiente para recuperar as pernas, trocar de roupa e de sapatos, comer decentemente e com calma, tirar umas fotos e tentar remediar a planta do pé, que afinal estava com uma ferida profunda, depois tanto tempo de pés molhados e fechados dentro dos sapatos. E depois de falar com o Paulo, que já havia chegado, mas que devido a problemas de estômago iria ficar a descansar um pouco mais em Courmayeur, despedi-me de todos e segui caminho para a segunda metade da corrida.
Até ao fim da corrida
A partir daqui não tenho muita história para contar. Tenho duas paisagens fabulosas, uma delas do lindíssimo refúgio Bonatti (se pensam em fazer uma caminhada à séria nos Alpes, não deixem de pernoitar aqui). E tenho muitas horas de corrida sozinho, muitas das quais de noite. E foi de noite que encontrei aqueles que seriam os meus seguintes companheiros de viagem, aqueles com quem iria terminar a prova: o Diogo e o Manel.
Tenho tempo também para descrever um outro episódio peculiar: uma paragem noturna que não estava nos planos, feita num posto de abastecimento improvisado em frente a uma casa, cuja própria família (pais, filhos e avós) haviam colocado sobre uma mesa na entrada, café, chá e biscoitos, ao serviço dos atletas que por ali passavam. E foi ali mesmo que, entre duas doses de cafeína e algumas gargalhadas, recuperei algum do ânimo para correr, aquele que a madrugada inevitavelmente acaba por tirar a qualquer pessoa.
O encontro com o Manuel e o Diogo foi feito de forma muito casual. Ia eu a subir um dos muitos trilhos noturnos em zigue-zague no meio das árvores, aqueles em que não se vê outra coisa durante horas, senão os 10 metros que o frontal ilumina à nossa frente, quando ao nível dos meus olhos me deparo com um par de perneiras muito familiar, nas pernas do corredor que apanhei à minha frente: vermelhas e com a palavra PORTUGAL escrita na vertical. Apesar de irmos todos a arfar, claro que meti logo conversa e claro que, respondendo com a habitual simpatia "tuga" nestas andanças e encontrando depois uns nos outros um ritmo semelhante, desde logo seguimos juntos no resto do caminho.
Já com mais de 100 km feitos e com uma estratégia de alimentação nos postos de abastecimento que - apesar de terem sempre os mesmos ingredientes - surtia o efeito desejado, tanto nas etapas mais longas como nas mais íngremes, a progressão ia-se notando cada vez mais rápida, com o controle dos tempos de fecho a ser feito cada vez com mais tempo de sobra. O caminho até ao final contava agora somente com duas subidas íngremes, a última das quais ao famoso Tête aux Vents, de onde já podíamos avistar Chamonix, que nos aguardava 1.000m mais abaixo.
Não sei onde alguém consegue ir buscar forças depois de passar quase 40 horas a correr. O que é certo é que os rochedos no alto da montanha já não eram obstáculo para as nossas pernas cansadas, nem os trilhos com pedras soltas e raízes de árvores eram suficientemente traiçoeiros para os nossos pés doridos. Na minha cabeça já só visualizava a entrada em Chamonix e de certeza que na cabeça do Manuel e do Diogo também já só se sonhava com essa tão ambicionada chegada.
É certo que nos cerca de 10 km que nos separavam do fim, muitas coisas poderiam ainda acontecer. Mas talvez a força do pensamento positivo ou mesmo as últimas forças que nos restavam no corpo tivessem sido as responsáveis pela fluidez daquela última hora de corrida, feita trilho abaixo, sempre a descer, no meio dos caminhantes que já há 41 horas nos pareciam gritar incessantemente palavras de incentivo como "Bravo!!! Super!!!"... incessantemente!
E, no final, tudo está bem quando acaba bem. Bandeira hasteada no bastão de corrida, últimas dezenas de metros feitos sem esforço, mas antes a voar baixinho entre as centenas de pessoas que ladeavam o caminho desenhado pela organização até à meta, sorrisos e mais sorrisos vindos de desconhecidos e de quem nos esperava ansiosamente na última curva antes do pórtico de chegada. E como só damos por terminada a prova quando todos de nós cruzamos a meta, claro que ainda esperámos pelo Paulo, que com a garra que lhe é tão característica, fez o último quilómetro rodeado de amigos e cruzou a meta com um ar de satisfação que só quem passa pelo mesmo lhe pode conhecer o sabor.
E depois do final
O concluir uma prova como o UTMB tem tanto uma enorme capacidade de nos deixar felizes, como com uma pontinha de tristeza. Porque por um lado concluímos um feito que muitas vezes julgámos nós próprios ser impossível. Porque vimos lugares e situações que tão cedo não vamos poder repetir. E porque parte de nós - finishers - afinal não chegou a cruzar a meta, mas ficou algures na alta montanha a correr.
Quem gosta de uma prova como o UTMB, gosta da montanha, onde impera o respeito pelo próximo e pelo seu habitat. Gosta de respirar do ar mais puro que o nosso planeta tem para nos dar. E sabe apreciar tanto uma boa gargalhada, como momentos de meditação e silêncio absolutos, que só locais assim conseguem proporcionar. É isto que é a essência do UTMB e é a isto que sabe correr na montanha. Quanto a mim, redescobri-me e apaixonei-me. Não sei quando irei regressar, mas com certeza que o vou fazer. E quando o fizer levarei uns de vós comigo. Aceitam o desafio?