O verdadeiro Bailinho da Madeira: a minha 1ª maratona de trail
Diagnóstico: entorse no pé; joelhos magoados; pernas atrofiadas. Antídoto: uma tremenda satisfação própria: terminei a minha primeira maratona. A Madeira já não é invencível e terá sempre um sabor especial!
Rewind... rewind... play!
Voltemos umas horas atrás neste filme, até às 21h15 de dia 24 de Maio, Machico. Ponto de encontro para os corajosos (ou deverei dizer loucos?) dos 115 km, os bravos que iriam aceitar o desafio de atravessar as montanhas da ilha da Madeira, de uma ponta à outra, na prova Madeira Island Ultra Trail (mais conhecida por MIUT). Junto aos autocarros, a emoção crescia ao ritmo dos aplausos com que nos despedíamos à medida que os víamos partir sem saber quando os voltaríamos a ver. Do Zé despedi-me com o coração bem apertado, com um “Diverte-te! Vemo-nos amanhã!”, fazendo figas para que todos acabassem bem a prova, sem lesões e com o ânimo bem carregado! Estava na hora de concentrar-me naquele que seria o meu desafio.
06h00, toca o despertador: a aventura vai começar!
Depois de um pequeno-almoço que teimava em não descer, preparado pela D.Lurdes, a “responsável nutricional” durante a nossa estadia na Madeira (mãe do nosso amigo Samuel que nos recebeu na ilha), o nosso autocarro partia rumo ao Pico do Areeiro, uma verdadeira Torre de Babel graças à variedade de idomas que se falavam na linha de partida dos 42km do Trail Município do Funchal. Estava nas nuvens - literalmente! A 1.818 metros de altitude, só via aquela que parecia uma cama de algodão por baixo dos nossos pés, iluminada pelo forte sol que tanta cor dá à Madeira. A meu lado, partia Diogo Fernandes, um amigo do Porto que viria a conquistar a voar o 2º lugar nesta prova - parabéns! Aquecimento feito, 10h00 no relógio, começa a prova!
“Lixei a prova”
Perdoem-me este título, mas foi na primeira coisa em que pensei quando, ao fim de 300 metros da partida, torci o pé. Como qualquer amante do trail running, torcer pés, fazer arranhões, escorregar, cair... é o pão nosso de cada dia, certo? Não nos queixamos. E mais: são como pequenas medalhas que aumentam o nosso orgulho quando cruzamos a meta. Mas esta torcidela... ui! Fui ao chão e as dores eram tão fortes que não conseguia mexer o pé: “lixei a prova”, pensei eu. Alguns minutos depois, a decisão tinha que ser tomada: desisto ou continuo? Ora, antes de ir para a Madeira, alguns amigos e familiares, perguntaram-me se eu conseguia fazer esta prova. Afinal, conhecem-me bem, sabem que não sou disciplinada com treinos e tinham noção, tal como eu, que não tinha feito uma preparação adequada e que esta prova seria uma loucura. É um facto, não tinha como negar! Mas é aqui que encontramos o busílis da questão: sabem aquela sensação única de terminar uma prova, superar o nosso corpo, ultrapassar os nossos objectivos e atravessar a linha da meta com o sentimento “eu sou capaz de tudo”? Pois bem... São esses breves segundos de glória pessoal que me fizeram decidir continuar. Não queria desistir. Levantei a cabeça e pus-me a caminho. Afinal, ainda faltavam 41km e 700m e eu tinha que aproveitar enquanto o pé ainda estava quente para não inchar mais e continuar a correr.
Não acredito em anjos da guarda... mas tive um!
Ao contrário da maioria da prova, os primeiros cerca de 14 km eram mais técnicos, mas num tipo de terreno matreiro, em que pedras soltas misturadas com terra húmida, que escorrega como manteiga, dominavam nesta primeira parte. São as provas técnicas que mais aprecio, talvez pela gestão do esforço ser-me mais confortável, não tendo tanto plano para rolar. Mas, mais uma vez, as contas saíram-me erradas: pela falta de preparação (mea culpa, admito!), os meus joelhos começaram desde logo a ceder. Não estava à espera que isso acontecesse tão cedo, mas foi mais um contratempo neste enredo, martirizando-me sempre que havia um mínimo de inclinações. E foi assim que as partes planas se tornaram as minhas melhores amigas nesta prova (esta é para aprenderes, Inês!).
Além do nível de dificuldade e beleza das provas de trail running, há o terceiro elemento que mais aprecio nestas provas que as distingue das de estrada: o companheirismo. O Zé já partilhou convosco alguns episódios, destacando o último no artigo sobre o MIUT e, seguramente, aqueles que correm por esses montes fora já se depararam com esta magia que paira sobre as provas de trail. Por volta do km 16 (não tinha relógio com GPS, logo nem o Norte sabia onde era) ouço alguém dizer-me após mais uma escorregadela: “são joelhos?”. Ora, parecia que me estavam a fazer o diagnóstico! Com a boa disposição que levo sempre comigo, para além da mochila, respondo a sorrir que sim, joelhos e uma entorse no pé desde o início. Era o Orlando Lopes. Não acredito em bruxas nem em anjos. Mas o Orlando foi o meu anjo da guarda nestes 42 km. E porquê? Porque tendo vivido episódio semelhante no MIUT do ano anterior, já imaginava as dores que eu estaria a sentir e, no lugar de seguir a prova dele com os seus bastões (fundamentais em subidas e descidas), parou e entregou-mos com um “precisa mais deles do que eu, neste momento”. Em troca, levou o bastão que eu tinha improvisado nos últimos quilómetros com um ramo, qual pastora me sentia! E seguiu a sua maratona. Confesso: um sorriso banhado em lágrimas de emoção por este gesto único deu-me forças para continuar. O Orlando tinha abdicado dos seus bastões por mim, por isso agora tinha mesmo que terminar. Ainda faltavam mais de 20 km para Machico!
Luta final: o Atlântico, eu e o som das árvores
Para alegrar os momentos em que (tentava) corria e caminhava sozinha, gritava “força!” aos atletas das provas dos 115 km e 85 km que passavam por mim, altura em que pensava como estaria o Zé? Quando faltavam apenas 12 km para o final, recebo o telefonema dele com a excelente disposição de quem parece que só correu 5 km. Agora era ele que estava no Pico do Areeiro para iniciar os seus últimos 42 km de prova, animado e com força para aguentar!
Confesso que estes últimos 12 km foram os mais difíceis: depois de ouvir por duas vezes a playlist que levava para esta prova, estava com dores, cansada e sentia-me só. Pensava nos verdadeiros atletas que aguentam mais de 24h de prova, algumas delas completamente sozinhos. Foi aqui que percebi: esta é que é “a” fase em que lutamos contra a nossa mente. É neste momento que a única imagem que queria e me esforçava por ver era a meta. Queria sentir aquela sensação de cruzá-la. E, nas últimas subidas e descidas, com o ruído do Atlântico a bater nas rochas ao fundo do penhasco, vinham-me à lembrança as mensagens de amigos e familiares enviadas durante a corrida que me deram o shot de energia final para percorrer a última levada até à meta.
Estive no topo do (meu) mundo e consegui!
Ao som de “On top of the world” cruzei a meta, a conter as lágrimas de alegria que teimavam em cair pelo orgulho que senti em terminar a minha primeira maratona de trail, ao fim de 10 horas, cruzando a meta a correr com aquela força que surgiu não sei de onde. É certo que não foi bem como queria, já não conseguia correr, longe das cerca de 7 horas que contava levar no máximo, mas consegui chegar e com um trambolho no lugar do pé, sem joelhos. E sim, senti-me a maior do meu bairro! Na meta, esperavam-me desconhecidos que me aplaudiam nos metros finais ao ritmo das minhas últimas passadas, amigos que me aguardavam com um sorrido na cara e de braços abertos para me receberem no fim da minha primeira maratona - obrigada, Telmo Dourado! Bolas, a emoção é única e não vos consigo traduzir em palavras! Mas recomendo, experimentem esta sensação, façam a vossa maratona de 42 km ou mesmo de 5 km: tudo o resto vos vai parecer fácil. Estive no topo do meu mundo e consegui.
Obrigada aos amigos que me encorajaram, aos familiares que me deram a energia que precisava, ao Zé pela inspiração dos seus sucessos. E obrigada ao Orlando que me emprestou os bastões que me guiaram à meta deste percurso lindo com uma organização fantástica. Este foi o filme da minha primeira maratona.