Antigamente, no período que ficou conhecido como "Idade das Trevas", pensava-se que a Terra era plana. Por exemplo, todos acreditavam que o navio de Cristovão Colombo cairia da borda da Terra ao atingir o horizonte. Certamente que, quem dizia tal coisa, nunca teria viajado para outros locais, nunca teria visto montanhas e muito menos teria subido ao topo de uma para contemplar o Mundo à sua volta. Condenava-se assim, em nome de Deus, as heresias proferidas pelas bocas daqueles que ousavam descobrir algo mais além. Com mais ou menos receios, mas nunca com medo de ousar, este fim de semana o nome de Deus foi proferido vezes sem conta no ponto mais alto de Portugal (continental). Ouvimos e dissemos "Oh Meu Deus" não só em jeitos de desabafo, mas porque este é o nome da corrida em que muitos atletas participaram entre 6ª feira e domingo. A prova que dá pelo nome de "Oh Meu Deus" levou inúmeros atletas a percorrer a Serra da Estrela, nas distâncias de 70km, 100km e 160km. Esta semana já fui treinar. No feriado de dia 10 Junho fui correr para a Serra de Sintra e hoje de manhã fui para o ginásio fazer um treino normal (Oh António, era normal ou mais puxado que o normal?). Apesar de já terem passado alguns dias depois da prova e de algumas imagens e momentos serem recordações que me parecem já tão distantes, as subidas e descidas ao longo da Serra da Estrela ainda se fazem sentir nas minhas pernas. A prova Oh Meu Deus tem - só pelo nome - um toque subtil de dificuldade acrescida. E não é para mais. Correr num sítio como a Serra da Estrela é uma experiência única e que, quem gosta da natureza, deveria fazer pelo menos uma vez na vida. Se não for a correr, que seja pelo menos a caminhar. Correr na Serra da Estrela é sinónimo de enfrentar uma altimetria elevada, terrenos nem sempre amigos dos nossos pés (principalmente quando estão a recuperar de uma fasceíte plantar) e, no caso desta prova, condições climatéricas que podem variar do muito boas para o muito péssimas! E como esta edição do "Oh Meu Deus" teve péssimas condições de tempo. Que o digam os atletas das distâncias maiores. Ainda estava eu em Lisboa a escrever o último post da semana passada, quando soava em Seia o tiro de partida para a prova de 160 km. Estava a chover torrencialmente em todo o país e Seia não era excepção. Umas horas depois, à meia noite de sábado sairia o grupo dos 100 km, também debaixo de chuva, a qual se fez sentir toda a noite. A essa hora já eu estava em Seia, a preparar-me para aproveitar umas horas de sono, antes da partida para a minha distância (70 km), que seria dada às 8h00 da manhã.
O início, rumo à Torre
O início da prova decorreu com alguma expectativa, já que o feedback dos participantes nas edições anteriores não era o melhor. Não é fácil organizar uma corrida de longa distância, muito menos num local como este e em condições muitas vezes adversas: podem falhar marcações, abastecimentos, inúmeras variáveis que, quase inevitavelmente, podem acontecer e que têm de ser previstas pela organização. Mas este ano a organização primou pela atenção aos participantes, prescindindo de certos items de edições anteriores e prestando mais atenção aos atletas, assistência, marcações e abastecimentos. E logo desde os primeiros quilómetros que isso se fez notar. As marcações praticamente não falharam ao longo de todo o percurso. Do meu, pelo menos. É certo que em alguns pontos poderiam já não estar tão visíveis como quando lá foram colocadas. Recordo que o mau tempo fez-se sentir até à manhã de sábado, o que certamente dificulta a manutenção de um percurso em condições perfeitas. Mas certamente que os atletas mais prevenidos iriam com o track (providenciado pela organização) no seu relógio com GPS (não foi o meu caso), ou estariam alertas para procurar outros sinais, como as típicas marcações dos percursos pedestres, ou ainda as mariolas, omnipresentes ao longo de toda a serra. A prova de 70 km dividiu-se em duas metades: a primeira metade consistiu nos primeiros 35 km, onde estava incluída a subida à Torre (somando até aqui 3.104m de desnível acumulado); a segunda consistiu nos restantes 37 km, com menos desnível e praticamente sempre a descer (e a correr) de regresso a Seia. Se uma subida como a que ligava Loriga à Torre pode parecer dura, por em 11km de distância se conquistarem quase 1.400m de desnível positivo (D+), eu mantenho a minha opinião que as descidas conseguem ser muito mais agressivas para o corpo (e pernas) do que qualquer subida que se possa fazer. Nos primeiros quilómetros de prova ia arranjando alguma companhia aqui e ali, dando para manter um ritmo relativamente bom, enquanto se trocavam dois dedos de conversa sobre as temáticas habituais nestes meios. O Bruno, companheiro de muitos treinos e provas e que esperava conseguir acompanhar até ao fim, começou mais rápido do que eu e cedo o perdi de vista, pelo que decidi focar-me em encontrar um ritmo que me permitisse correr de forma consistente, embora sem desgastar demasiado o corpo. Mais tarde encontrei o Nuno, que se revelou ser uma boa companhia nesta primeira parte da prova e que me ajudou a manter um ritmo relativamente rápido, principalmente nas partes mais "corríveis". Passava o primeiro posto de abastecimento em Valezim, depois o de Loriga e começava a ascensão até à Torre. Resumir toda uma prova a um trecho de pouco mais de 11 km pode parecer injusto, mas é mais que certo que este foi o local onde mais usufruí da prova, da Serra e de mim próprio. Como disse há uns parágrafos atrás, correr num sítio destes é uma verdadeira bênção (talvez daí o nome mais adequado para esta prova ser mesmo "Oh Meu Deus"): montes e vales a perder de vista a toda a nossa volta, ribeiros, riachos, cascatas, paredes enormes de rocha contrastantes com precipícios abruptos, natureza a rodear-nos, silêncio. Na subida, o ritmo dos passinhos curtos mas constantes permitiu-me progredir - sempre sozinho - com relativo à vontade metro a metro, rocha a rocha, apreciando sempre que podia belezas naturais como a garganta do Loriga (ribeira herdada do antigo glaciar de Loriga), a Nave Mestra, ou mesmo a aproximação à Lagoa Comprida, vindos de baixo em direção ascendente. Só depois dos 1.800m de altitude é que o tempo começava a fechar e a arrefecer, sendo necessário recorrer às mangas compridas e ao casaco corta vento, pois o vento forte e frio tornava-se desconfortável e ameaçava baixar-nos consideravelmente a temperatura corporal. Não nos podemos esquecer que, apesar de termos feito toda a prova até ali de tshirt e calções, estávamos - afinal - a quase 1.900m de altitude e corríamos muitas vezes ao lado de ainda resistentes farrapos de neve, tornando-se mais que evidente que devemos sempre seguir o tal ditado que diz: "quem vai para o mar, avia-se em terra", ou seja, quem vai subir à montanha, já sabe que tem de ir prevenido. Este era também um dos meus objetivos para participar nesta prova, ou seja, treinar não só corrida e D+ com vista ao UTMB, mas principalmente experimentar a corrida em altitude. Se bem que não deu para sentir qualquer efeito secundário ao nível de uma possível respiração mais ofegante ou maior cansaço físico, deu para testar alguma da estratégia de equipamento que irei levar para a prova nos Alpes. Faltará a experiência de correr na neve e - eventualmente - da chuva. Abastecimento feito no abrigo quentinho da Torre, equipamento de novo colocado às costas, era tempo de seguir caminho. Estávamos a meio da prova e iria agora começar a descida.
De regresso a Seia
Da Torre a Vale Rossim distam pouco mais de 16 km. Seria o trecho mais longo entre abastecimentos, embora nesta metade o cansaço das subidas pudesse ser esquecido. Estavam subidos cerca de 3.100m e restavam cerca de 600m de desnível. No entanto, as subidas iam ser substituídas pelas descidas e devo dizer que sofri nesta segunda metade da prova. As descidas eram feitas em terreno muitas vezes instável, outras com demasiadas pedras para as minhas pernas e para o meu pé esquerdo, ainda a recuperar de uma fasceíte plantar. O resultado foi uma chegada demasiado penosa a Vale Rossim, para encontrar o Bruno ainda no posto de abastecimento, a curar com a equipa de primeiros socorros um joelho magoado de uma queda. Como o principal objetivo da prova estava alcançado (subida à Torre), daqui para a frente faríamos companhia um ao outro até à meta. E pouco haverá mais para dizer sobre esta parte do percurso. A juntar às descidas que nos faziam gemer os quadricípites (como é que se escreve mesmo?), as conversas (não só entre ambos, mas também com os amáveis habitantes de cada um dos locais por onde passávamos) e a boa disposição de se estar a fazer o que se gosta fizeram parte de cada minuto. Ainda encontrámos forças para correr bem no último troço até à entrada em Seia, concluindo a prova com 10h43 minutos e com o sentimento de missão cumprida (vejam as classificações finais aqui). Agora há que descansar um pouco, treinar de forma adequada, para poder estar presente já nos próximos desafios, metas rumo ao grande objetivo de correr numa prova com 9.600m de desnível positivo. Rumo à montanha, que é isso que eu gosto!