Ter | 03.12.19
Porque é que os dias de descanso são importantes para um bom desempenho na corrida?
José Guimarães
A nossa "massa cinzenta" parece-se muito com uma esponja, capaz de absorver um universo inteiro! E quando parece estar saturada e sem espaço para mais, ainda consegue espaço para mais. Já os ossos, cartilagens e afins, não se comportam da mesma forma. Fora do nosso cérebro, o processo de stress, recuperação e adaptação joga-se com regras mais apertadas. Mas vejamos.
O nosso corpo obedece a ordens e, muito frequentemente, essas ordens muitas vezes podem levar à estagnação, à regressão, ou mesmo à lesão, normalmente provocada por excessos. É um cenário mais frequente do que se possa pensar. Por exemplo, um atleta muito motivado acaba um treino de, digamos, 10 repetições de 3 minutos de corrida rápida, com uma recuperação de 2 minutos. No final está exausto... mas, como está super motivado, o cérebro dele só precisa de poucos minutos para voltar ao ativo! No entanto, o corpo está a trabalhar noutro registo completamente diferente.
Assim, faz todo o sentido que estes atletas altamente motivados precisem, mas detestem os dias de descanso. Pensam que é tempo perdido, que se podia estar a aproveitar para treinar! Afinal "A prova está aí à porta e estou parado?! Porque é que o meu treinador me trata como um bebé???"
São pensamentos perfeitamente compreensíveis. Mas, pelo que já pude observar (e estudar), os dias de descanso são dos mais importantes de um plano de treinos. Repouso de qualidade é essencial para ganhar força, velocidade, resistência e tudo o mais que entra na equação da performance física. E como a fisiologia é uma ciência complexa e muito debatida, aqui fica um resumo de 8 pontos chave que devem ter sempre em atenção.
1º Glicogénio
Treinar de forma consistente coloca o corpo debaixo de uma necessidade constante de acumular novas reservas de glicogénio. À medida que o glicogénio diminui, a performance também diminui. E enquanto treinar com níveis baixos de glicogénio pode ser interessante para certas adaptações, fazê-lo de forma constante pode aumentar os níveis de stress, que podem diminuir ou mesmo reverter essas adaptações.
Evitar níveis baixos de energia é essencial para crescimento a longo prazo. O glicogénio é consumido rapidamente e demora algum tempo a reabastecer, portanto o treino constante pode trazer alguns perigos. Os dias de descanso dão aos atletas tempo suficiente para "encher o depósito" e, com essa energia extra, o corpo pode adaptar-se ao trabalho feito até então.
2º Hormonas
Aqui está algo que talvez não saibam. Muito treino pode prejudicar o apetite e performance sexual. Um artigo do "Medicine & Science in Sport & Exercise" revelou que homens com um nível crónico de treino intensivo e treino de resistência tinham menos líbido, bem como uma redução dos níveis de testosterona. Outro artigo revelou mesmo que a falta de energia derivada ao exercício intenso poderia suprimir os níveis de hormonas sexuais femininas.
Isto leva-nos de volta ao início deste artigo. O nosso cérebro pode até funcionar como uma besta sexual!!! Mas a química no nosso sistema nervoso pode virar-se e dizer "desculpa... mas hoje não dá!"
Os dias de descanso podem melhorar este equilíbrio com o passar do tempo, particularmente quando são combinados com ingestão calórica adequada. E as hormonas sexuais são importantes também para os processos de adaptação e a saúde em geral.
3º Cortisol
O cortisol é uma hormona produzida em resposta ao stress, o que inclui o exercício físico, já que esta é uma hormona responsável pela regulação da concentração de glucose no sangue. A exposição crónica ao cortisol pode minar muitos elementos que fazem de nós seres humanos, desde as funções cognitivas, ao desempenho atlético ou até mesmo a composição corporal (são daqueles que não conseguem emagrecer ou engordar, não importa o esforço que façam?). É um pouco como aquele amigo com quem vocês gostam sempre de estar, mas que quando bebe demais, a festa torna-se um inferno!
4º Processos de adaptação
Há que pensar como é que os processos de adaptação funcionam. Enquanto podemos apontar variáveis como a genética, resposta ao stress, fisiologia, não conseguimos detalhar as coisas tal e qual acontecem na vida real. Treinar é ter que levar em conta um sem número de sistemas complexos, apostar um pouco na sorte e sentir que há umas soluções que funcionam melhor que outras.
Uma vez que não é possível termos 100% de garantias sobre que trabalho leva a que adaptações em concreto, a chave é não deixar que os processos cheguem ao seu limite. Um exemplo prático de como trabalhar as adaptações é nos processos de recuperação. Quase de certeza que, se pegarem num atleta que fez um pouco menos do que devia (seja por precaução, ou por outros constrangimentos, como uma lesão), quase de certeza que, no longo prazo, esse atleta chegou um pouco mais longe do que um atleta que fez mais do que devia ter feito.
Os dias de recuperação são também uma garantia de adaptação a longo prazo. Talvez sacrifiquem algumas adaptações aeróbicas a curto prazo sim, mas de certeza que, no longo prazo, o investimento vai compensar.
5º Lesões por excesso de treino
A parte mais difícil de aturar na corrida é o impacto! Por isso é que esta conversa seria totalmente diferente se estivessemos a falar de, por exemplo, natação, que precisam muito menos de recuperar. O stress musculo-esquelético que implica a corrida é enorme, mesmo em ritmos mais lentos, e as lesões por excesso de treino normalmente "fermentam" muito antes de vir à tona.
Os dias de descanso podem prevenir os problemas, mesmo antes de vocês se aperceberem que eles existem. Para a maior parte das pessoas, estes dias de descanso são mesmo uma chance para que a genética faça a sua magia.
6º Débito cardíaco e volémia
É possível (e algo discutível quando analisado num só dia) que o volume de sangue possa diminuir com o repouso. Adicionalmente, o débido cardíaco (a quantidade de sangue que o coração bombeia em cada batimento) pode passar também por algumas alterações. No entanto, ambas as variáveis tendem a chegar sempre a um determinado limite, o que quer dizer que não vão estar a comprometer adaptações de longo prazo por descansarem um dia ou dois.
Estes níveis podem explicar porque é que às vezes os atletas se sentem cansados ou preguiçosos depois de dias a descansar (isto e variáveis neuromusculares). Mas geralmente essa preguiça precede uma melhor sensação física nos dias seguintes, portanto considerem apenas não descansar nos dias que antecedem os treinos mais duros ou as provas mais difíceis.
7º Variáveis neuromusculares
A economia neuromuscular é um termo usado para descrever como o nosso cérebro e os músculos comunicam entre si, para coordenar a tarefa complexa que é correr. Os dias de descanso conseguem reduzir tensões musculares e tornar as fibras musculares ligeiramente mais "frouxas", portanto, se correm de forma consistente, é perfeitamente normal que se sintam melhores depois de uma ou duas corridas.
As variáveis cardíacas e neuromusculares requerem alguma paciência depois de um dia de descanso e isso não quer dizer que não devam descansar. É como se drenassem um pouco da vossa "esponja", para depois conseguirem absorver novamente mais matéria.
8º Genética
De certeza que, perante algum facto que não se sabe explicar, já ouviram alguém dizer "é a genética!". Não se sabe exatamente como esta funciona para os atletas, portanto é a melhor e mais irrefutável resposta possível. Mas esses genes funcionam de uma forma para umas pessoas e de outra forma para outras pessoas. Portanto o que é bom para o nosso "vizinho do lado", pode não ser bom para nós.
Portanto, mesmo os dias de descanso dependem da genética de uns atletas para outros. E neste momento coloquei tudo em cheque... :)
Conclusão
Gosto que os meus alunos/ atletas tenham pelo menos um dia de descanso semanal. Nesse dia de descanso, podem estar ativos com atividades de baixo impacto e de preferência pouco stressantes, nem qualquer tipo de impacto aeróbico. Foquem-se no mais importante: na vida! E no que de mais importante nós temos, que é a oportunidade de sermos ativos e de gostarmos daquilo que fazemos.
Dias de descanso dão tempo para os nossos cérebros se lembrarem que, mesmo querendo fazer mais e melhor, os nossos corpos não funcionam dessa forma. Os ossos e músculos são mais frágeis. E o truque está em saber encontrar esse equilíbrio.
Fonte: Trail Runner Mag