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Ex-Sedentário - José Guimarães

A motivação também se treina!

03.02.15

Porque os Trilhos dos Abutres são os Trilhos dos Abutres


José Guimarães
Se há provas de corrida com uma mística muito própria (e claro que as há), os Trilhos dos Abutres são sem dúvida uma delas. No que a mim me toca, foi a primeira prova longa de trail running em que participei. Na altura (se não me falha a memória foi em 2012) corriam-se 45 km. Atualmente, a fasquia subiu para 50 km. Mas as características que a diferenciam de todas as outras provas em que já participei mantêm-se. Este ano, lá nos aguardavam a belíssima Serra da Lousã, os seus trilhos tão característicos, os seus "sobes" agressivos e os seus "desces" rápidos e divertidíssimos. E também lá estavam a água, a lama e o frio, este ano todas elas elevadas à 10ª potência, comparativamente ao que costuma ser habitual. Mas já lá irei. Normalmente não costumo stressar muito com o mau tempo nas provas. Mas confesso que a chuvada que já apanhara no dia anterior, durante a viagem de carro até Miranda do Corvo, não me estava a deixar muito confortável. O próprio atraso que o temporal havia provocado na minha chegada à tertúlia na Loja do Sr. Falcão, parecia não agoirar coisa boa. Depois de me ter deitado a chover e depois de acordar às 6 da manhã, espreitar para a rua e ter visto que continuava a chover, confesso que receber um SMS da organização a informar que a partida tinha sido adiada para as 10 horas, me tranquilizou um pouco. Simplesmente não me estava a apetecer nada apanhar uma valente molha no meio da serra. Já tinha a experiência das edições anteriores dos Abutres, portanto já sabia que lama iria haver e em quantidade. Então com chuva, não queria nem imaginar. E não poderia nunca imaginar o que estava à nossa espera. A chegada ao pavilhão municipal na manhã do dia 31 anunciava uma grande festa. Não me recordo de ver tanta gente assim nas outras edições dos Trilhos dos Abutres. O recinto era pouco para as multidões que já formavam enormes filas para se aceder aos locais do controlo zero, a fim de verificar o material obrigatório para a prova. Mochila, manta térmica, telemóvel e frontal verificados (sim, frontal, pois com o adiamento da partida previa-se que, para para a grande maioria dos participantes, a prova só terminasse de noite), acedemos à zona de concentração para a partida, no recinto no exterior do pavilhão. Aqui e já perto da hora de partida, já nem a chuva nem o frio se faziam sentir como antes. Estava sol. Afinal, parecia que a decisão da organização de adiar a partida 2 horas tinha sido acertada. Pelo menos não iríamos começar a correr debaixo de chuva. Dada a partida e aproveitando as boas condições de tempo, sendo os primeiros quilómetros de corrida feitos pelas ruas de Miranda do Corvo, tentei puxar um pouco pelas pernas, para aquecer e para chegar o mais possível à frente da corrida. Desta forma, assim que chegássemos aos primeiros trilhos mais técnicos, teria menos gente pela frente e poderia ir mais tranquilo e com atenção redobrada aos sítios onde punha os pés. Tivemos a primeira sensação do tipo "isto vai ser um desafio tremendo" quando, ainda em Miranda do Corvo, passámos pela ponte por cima do parque desportivo e vimos com espanto (e algum toque de humor negro) que só os topos das balizas do campo de futebol apareciam por cima da água. Parque desportivo e arredores, tudo estava submerso. E logo após passarmos pelo Parque Biológico de Miranda do Corvo, mal começámos a atacar a primeira subida, sentimos logo como estava praticamente toda a serra. Quer fosse a subir ou a descer, água e mais água escorria ao longo dos trilhos. Os riachos que, noutras ocasiões estariam até convidativos a refrescar os pés sem qualquer problema, transformavam-se agora em autênticos rápidos de água turva, chegando ao ponto de formar cascatas tão barulhentas, que mais pareciam autênticas barragens em descarga máxima. Com isto tudo, nos locais mais baixos, onde a água se concentrava em maior quantidade, toda a lama e sedimentos encontravam-se e estagnavam, formando autênticos pântanos lamacentos. Este expoente máximo esperava por nós principalmente no último troço do percurso, onde facilmente eu me enterrava em lama até à cintura... eu, que tenho 1,90 m de altura. Mas as principais dificuldades sentidas ao longo da prova não se resumiram à água e consequentes lamaçais. Quanto a isto, se vamos para uma prova de corrida no meio de trilhos, ainda para mais na Serra da Lousã, temos que ter noção da realidade em que nos vamos meter. Temos que nos mentalizar que não vamos para uma caminhada, que vamos ter que molhar os pés para atravessar cursos de água, que vamos ter de correr em terrenos lamacentos e que se torna importantíssimo levar equipamento adequado para tal. Claro está que, existiram alguns troços que pensei que talvez estivesse no meio de algum treino militar. Mas não. Os trilhos da Lousã são assim mesmo. Naquele dia só estavam "um pouco" piores que o habitual. Tirando o fator "água + terra = lama", ainda havia que enfrentar um inimigo implacável: o frio! A altitude máxima medida no meu Suunto foi de 922 metros. Ora, estávamos em Janeiro e, na Serra da Lousã, ainda por cima com mau tempo, é perfeitamente natural que as temperaturas desçam consideravelmente, principalmente acima dos 600/700 m de altitude. Foi mesmo isso que aconteceu. Por duas vezes choveu granizo enquanto corríamos. A primeira foi de tal maneira agressiva, que me lembro das pedras de gelo me magoarem as orelhas, tal era a força com que caíam. E ainda íamos a subir, pelo que se previa que as condições climatéricas piorassem. Foi aqui que decidi vestir o meu casaco. Nunca mais o tirei. Mesmo assim ainda via alguns atletas a correr sem casaco. Vi ainda outros de tshirt. Sim, de tshirt! Potencialmente desafiavam a sorte. Potencialmente ficaram retidos num posto de controle, embrulhados na manta de sobrevivência com algum princípio de hipotermia, como sei que muitos ficaram. Foi a edição desta prova onde isso mais aconteceu. Pergunto-me se por culpa do frio, ou do baixo nível de precaução de quem o frio enfrentava. [caption id="attachment_5502" align="alignleft" width="300"]jose_guimaraes_trilhosdosabutres_desedentarioamaratonista Eu (foto: Paula Fonseca)[/caption] Quanto a mim, fui sempre bem equipado. Ou pelo menos de forma adequada às condições que enfrentei. Mesmo assim cometi alguns erros. As mãos congelaram-me. As luvas que usei não foram suficientes (tanto me lembrei das "Vileda" do UTMB, que tinha deixado em Lisboa). Depois de uma queda sem gravidade me ter deixado grande parte do equipamento molhado, andei quilómetros a aquecer as pontas dos dedos na boca e a cuspir lama. Ainda tentei secar as luvas numa fogueira acesa pela organização, mas não só não consegui secar nada, como já me estava era a intoxicar com o fumo. As minhas meias romperam-se com tanta lama que se acumulou dentro dos sapatos. Uma das palmilhas ficou inutilizada. Mas foi o pior que me aconteceu. Penso que esta foi a edição dos Trilhos dos Abutres com o maior número de atletas que não chegaram ao fim. Cerca de metade, creio eu. Soube das polémicas por causa da organização ter barrado os atletas que chegavam aos postos de controle pouco fora do tempo limite. Também soube de algumas desistências, muitas delas porque a prova estava a ter um nível de exigência demasiado elevado. Penso que muitos destes atletas não estariam fisicamente preparados, ou mentalmente, ou nem mesmo devidamente equipados. Soube de pessoas que corriam com ténis de estrada, o que nem devia ter sido permitido logo de início. Sei comprovadamente que a organização desta prova deu o seu melhor e tudo fez para que ninguém tivesse a sua integridade física posta em causa. No final de contas, penso que este objetivo foi conseguido. No final de contas, penso que temos de fazer aquilo que mais gostamos, mas de forma equilibrada. Devemos praticar mais atividades como esta, que nos obriguem a sair fora da caixa, para lá da nossa zona de conforto, a desafiar os nossos limites, mas de forma que nos faça sentido e que não nos coloque em perigo. Correr é por si um ato que considero natural no Ser humano. Correr no meio da natureza, como é nos Trilhos dos Abutres, coloca esse mesmo Ser humano em contacto com o meio natural envolvente, que não só tem de saber conservar, como respeitar. E respeitá-lo é também respeitar-se a si próprio, coexistindo e inserindo-se no meio de forma pacífica, não colocando em perigo nem o primeiro, nem a sua própria existência. Mais uma vez, penso que este é um local por excelência para todos aprendermos a fazê-lo. Até para o ano, com certeza! Foto destaque: Rosa Farola

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