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Ex-Sedentário - José Guimarães

A motivação também se treina!

Sex | 16.11.12

São Martinho no UTAX - Ultra Trail das Aldeias do Xisto

José Guimarães

Desenganem-se aqueles que, levados pelo título (e ainda sem terem lido os comentários que desde domingo têm inundado as redes sociais), possam estar neste momento a pensar que o UTAX - Ultra Trail das Aldeias do Xisto foi uma prova brindada pelo bom tempo e pelas vistas magníficas da Serra da Lousã e das suas 27 Aldeias do Xisto. Foi tudo menos isso! O São Martinho apareceu no seu dia (domingo, 11 de Novembro), certo como um relógio. Mas a prova foi no dia 10. É como diz o ditado: "depois da tempestade vem a bonança"... neste caso a sabedoria popular foi mais certeira do que as previsões meteorológicas da véspera da prova.

Deu-se o cúmulo de, já depois da prova terminada e do banho tomado nas piscinas da Lousã, querermos sair à rua para arrumar as mochilas no carro e ir jantar e o que nos esperava novamente? Chuva e mais chuva! Tinha sido assim praticamente o dia inteiro e era assim que ainda continuava durante a noite. O tempo não ajudou mesmo nada. Felizmente os amigos e o companheirismo que cada vez mais aprecio neste desporto ajudaram a superar todos os obstáculos que (já referi?) foram muitos.

Primeiro o menos importante

O tempo

É um facto: não se esperavam grandes condições meteorológicas para o dia da prova. Mas daí a isto?!... As previsões lidas na noite anterior falavam em aguaceiros durante a manhã e algumas abertas a partir do meio da tarde. Falharam redondamente.

Já li alguns comentários aqui e ali e todos são unânimes quando dizem que foi uma das provas com piores que condições climatéricas que já apanharam em Portugal. Não tenho assim tanta experiência de trail running que me permita afirmar o mesmo, mas posso dizer que me lembrei muitas vezes da primeira edição do GTSA - Grande Trail da Serra d'Arga no ano passado, prova em que, devido ao mau tempo que caiu sobre a serra, o Carlos Sá se viu obrigado a cancelar a distância maior. Lembro-me de eu, a minha irmã, a Inês e o meu primo, andarmos em grupo, juntinhos, para nos abrigarmos uns com os outros do vento e chuva fortes que se abatiam sobre a serra. Mas o clima de serra é mesmo assim e, entre chuva permanente (que por vezes caía de forma torrencial) vento e frio, as provações foram muitas e serviram todos os atletas de qualquer das distâncias. Recordo-me de consistentemente comentar com o Nuno, o meu companheiro de corrida desde o início até ao fim da mesma, que já me enervava cada vez que começávamos a subir em altitude, pois quanto mais no alto da serra estávamos, mais o clima piorava: mais chuva, mais vento, mais nevoeiro... e mais frio!!!

O frio

O frio foi terrível! Posso-vos dizer que no posto de abastecimento dos 62 kms estive a pensar se havia ou não de terminar por ali a corrida. O meu corpo tremia por dentro, gelado. A deliciosa canja de galinha não conseguia entrar e tive a noção de que assim não me conseguiria alimentar decentemente. A etapa até ali tinha sido a pior: os últimos quilómetros haviam dado para emoções como nunca havia experimentado antes numa corrida. Nessa etapa a chuva não abrandou. Pelo contrário, choveu muito. E choveu muito mesmo, particularmente na altura em que eu e o Nuno estávamos a chegar às eólicas num dos topos da serra, num estradão sem qualquer árvore ou abrigo de qualquer espécie. Apesar do muito nevoeiro sabíamos que estavam ali as eólicas porque passávamos ao lado das mesmas e podia-se ouvir o barulho das suas pás a cortar o vento... vento esse que vinha impiedoso e batido com a chuva, forte, lateral.

O vento

Não sei se foi antes ou depois desta zona, mas lembro-me de num dado momento estar completamente ensopado e mal sentir as mãos (de tão geladas que estavam), quando uma fúria me assolou por dentro. Nesse momento disse ao Nuno: "temos que sair desta situação... estou a gelar... temos que correr rápido para produzir calor"... Parecia ser a diferença entre conseguir ou não levar aquela aventura para a frente. Começámos a correr e eu fui à frente a maior parte do percurso. Não me recordo durante quanto tempo corremos, nem quantos quilómetros fizemos (já não tinha sensibilidade nos dedos para tirar o relógio debaixo da manga do corta vento), mas sei que corremos rápido, com tudo o que tínhamos, sem baixar de ritmo por um momento que fosse. De molares cerrados sentia o meu corpo empurrado por uma raiva desenfreada, como quem diz "não podes parar, senão ficas-te aqui". Enquanto corria (aqui vêm as meditações enquanto se corre) lembrei-me muitas vezes do Dr Pedro Amorim que nas jornadas técnicas do GTSA explicou aos interessados aquilo a que se dá o nome de "wind chill factor". Eis o porquê da única opção naquele momento ser correr para aquecer, por cima de água e da lama, a qual também não foi pouca.

A lama

Aqui estava uma dificuldade acrescida em todo o percurso: a lama! Não se comparou à lama que encontrei no Última Frontera (a que os espanhóis chamavam "barro", tal era a forma como se amontoava na sola dos ténis), mas estava por todo o lado e era muito escorregadia. Se as folhas de outono caídas dos castanheiros davam para escorregar em certas partes do percurso, a lama não foi uma ajuda. Pelo contrário, tornava certas partes do percurso autênticas pistas de patinagem. Principalmente nas descidas mais acentuadas, onde os únicos pontos de apoio que encontrávamos para os pés estavam nas raízes, algumas rochas ou nos buracos já escavados pelos atletas que haviam passado antes de nós. Mesmo assim, o perigo espreitava de cada vez que o pé falhava o sítio certo e entrava em modo de slide. Aí não havia muito a fazer e, por vezes, o melhor era mesmo nem travar e aproveitar o momento para aprender a esquiar, até ser possível parar em segurança, antes de cair com o rabo no chão.

As rochas

Aqui estava um ponto que, apesar de perigoso, me dá sempre um prazer enorme. Grande parte do final do percurso do UTAX coincide com parte do percurso do Trilho dos Abutres, uma prova também com o "selo" da Serra da Lousã e que me espera já no final de Janeiro, quase em formato de "rentrée". Recordo-me desta prova com especiais saudades, não só porque foi o meu primeiro ultra trail, como a categorizei como uma das mais bonitas e interessantes, principalmente por causa do percurso. É um percurso muito técnico, cheio de cursos de água, pés molhados, declives perigosos, com cordas para nos agarrarmos e rochas para saltarmos. Mas é do que eu mais gosto. Se uma corrida puder ter um pouco de velocidade e deste tipo de "diversão", tanto melhor. O único senão aqui no UTAX foi a chuva, que tornava esta parte do percurso uma pista de obstáculos de dificuldade acrescida e não nos deixava abusar muito da sorte. Mas nem por isso menos divertido! E que o digam os meus dois companheiros desta última parte da prova.

O mais importante

O companheirismo

O companheirismo nas provas de trail running já não é novidade. E no UTAX ficou provado como é importante que as pessoas sejam humanas, se ajudem umas às outras e prestem auxílio, seja do mais insignificante ao mais louvável. No fundo, não pensarem só em correr a corrida. E logo desde o início, não houve ninguém que não ajudasse fosse como fosse: com um alerta por aquele bocado de troço estar perigoso, ou com uma palavra de incentivo, todos de alguma forma partilhavam aquilo que sempre faço questão de ressaltar neste desporto: um nível de companheirismo como não há igual!

O meu companheiro de corrida

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O Nuno Azevedo foi o meu companheiro de corrida, desde o início até ao fim das 16 horas de prova. Se eu ou ele podíamos a dada altura ter corrido mais rápido que o outro? Sim, claro que sim. Mas não o fizemos. O Nuno ia participar pela primeira vez numa prova com 82 km, ainda para mais com aquelas características. Eu vim de uma prova de 100 milhas em Espanha com um objetivo: chegar ao fim e levar comigo mais 3 pontos para o UTMB. O plano estava - portanto - delineado: fazer uma prova tranquila e chegar ao fim com um tempo interessante (definimos a meio da prova que o objetivo seria terminar antes da meia noite). No que é que isto nos ajudou? Em tudo! Puxámos um pelo outro quando era para puxar, refreámos o impulso de correr quando era para poupar as pernas, auxiliámo-nos com os abastecimentos, trocámos conversa para manter o espírito alerta... ajudámo-nos. E o resultado só podia ter sido um: termos chegado ao fim com saúde e sem mazelas de maior. Estás de parabéns Nuno!

Estou certo que ainda faremos muitos quilómetros juntos. Durante a prova, muitos são os atletas com os quais fazemos contacto, uns "repetentes", outros pela primeira vez. Passando alguns casos cujos protagonistas certamente se lembrarão, ressalto dois casos: cada um deles com o seu peso de motivação para que eu conseguisse levar esta prova até ao fim.

O truque da manta térmica

Já referi antes que a chegada ao km 62 foi duríssima e que, aqui, ponderava sinceramente se havia ou não de continuar. Continuei, em particular graças a dois atletas que se precaviam da melhor forma contra o frio. Um deles, que estava mais ou menos no meu estado, estava com a ajuda de outro a vestir (literalmente) a manta térmica (parte do material obrigatório em provas desta natureza). Foi quando vi isto que me virei para o Nuno e lhe disse que era exatamente isso que eu ia fazer. Porque é que a manta térmica só havia de servir para nos aquecermos parados? E com a ajuda destes amigos, cujo nome desconheço completamente (se lerem isto, por favor "acusem-se", pois gostava de vos agradecer), vesti a manta térmica por cima da roupa ensopada, coloquei o corta-vento e a mochila por cima e... efeito imediato: o calor corporal começou a fazer-se sentir e após os primeiros minutos de regresso à corrida, inundou-me um alento de calor que me fez pensar "sim, assim vai ser possível!"

A ajuda do Augusto

A ajuda motivacional número dois veio meio que acidentalmente, da parte de um atleta que neste tenebroso km 62 estava sozinho, pois o seu companheiro optara por não seguir caminho. O Augusto Oliveira é uma máquina e bem que nos "rebocou" a mim e ao Nuno até ao final da prova. Logo depois de sairmos do abastecimento aos 62 kms, agora bem quentinhos, muitas foram as escorregadelas, os declives, os troncos, rochas e demais obstáculos que verdadeiramente conquistávamos sem perder ritmo, muito graças ao ritmo do Augusto. Ainda para mais, a noite já caíra e iríamos atacar a fase mais complicada da prova, não fosse o facto do nosso novo companheiro conhecer todos os pormenores do trilho e pontos de passagem chave. Aliás, muito do Trilho dos Abutres que ia reconhecendo foi graças ao Augusto, que nos ia indicando passo a passo onde estávamos e onde ainda iríamos passar. Porque vou ser sincero: de noite, à chuva e frontal na cabeça, pouco mais vejo que a meua dúzia de metros iluminados à minha frente. Às tantas o processo mental de concentração é tal, que depois chego ao fim e não me lembro de metade do que fiz ou por onde andei...

Os amigos

Mas no meio de tanto ainda há espaço para recordar algumas boas surpresas. Ao chegarmos ao último posto de abastecimento (que por sinal reconheci como coincidente como o último posto de abastecimento do Trilho dos Abutres), ainda não tinha desembaciado os olhos da chuva e já ouvia a festa! Um grande grupo de amigos, entre irmã, namorada, namorado da irmã e outros, esperavam-nos para nos dar aquele último apoio, antes de retomarmos o caminho até à meta. O que posso dizer? Foi bom, foi muito bom. São estes pequenos gestos que sabem bem e nos aquecem a alma, mais até do que o cafézinho da máquina que ali pudemos tomar, para aquecer o interior e nos dar aquela última recarga de cafeína. E os abraços e o calor humano alimentam o que resta de qualquer atleta, mais do que qualquer bolo energético cheio de calorias e hidratos de carbono. Como dizia mais tarde o Vitor (que convidei para correr os últimos 10 km connosco e que prontamente aceitou, sem hesitar), onde é que noutro desporto isto acontece? Realmente não sei responder. O espírito de equipa é algo em que sempre acreditei e que gosto de cultivar, mas o espírito humano é algo mais, muito mais. E que no trail running se vê, se sente e se usufrui. O resultado foi que os 10 kms finais foram os mais rápidos de todo o percurso, feitos sem deixar cair o ritmo... pelo contrário, acho que quanto mais nos aproximávamos da meta, mais rápido corríamos. O meu GPS já há muito havia ficado sem bateria, mas com muita curiosidade ia gostar de rever o ritmo daqueles últimos quilómetros.

O final e o que aí vem agora...

Pouco mais há a dizer sobre a prova. Os elogios estão feitos, não só à beleza de um puro trail, como à sua dureza (porque quem faz trail running gosta de dureza), não esquecendo a fabulosa organização, que pela simpatia e profissionalismo estão obviamente de parabéns. Depois de correr e de na meta reencontrar o conforto com amigos e conhecidos, nada melhor que um banho bem quente, um jantar bem reconfortante e uma noite de sono em frente a uma lareira quentinha (sim, nas instalações do solo duro), antes de no dia seguinte pegar no carro e voltar a casa, suportando o empeno habitual destas coisas. Agora há que descansar um pouco.

O ano de corridas grandes para mim terminou e agora vou dar ao corpo o descanso que ele merece. As próximas corridas serão em ritmo de treino e curtas (por favor!!!). Se há planos? Claro que há. Consistem em continuar a treinar, fazer ginásio e retomar a natação. Se estou a pensar noutros vôos? Claro que sim... vôos maiores, talvez uma ou outra prova de triatlo, se conseguir comprar uma bicicleta, quem sabe? O futuro está aberto a todas as possibilidades. Resta-me focar e trabalhar para isso. Mas, como sempre, vou mantendo a partilha ativa neste canal. Mantenham-se sintonizados...

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