Confesso que não sabia quem era Sálvio Nora. Neste sábado, por ocasião do Ultra Trail da Serra da Freita, celebrou-se uma homenagem a este homem, pelo que depois tive que ir pesquisar.
Quem foi Sálvio Nora?
Pelo que pude ler na pouca informação disponível online, descobri num post da autoria de Fernando Costa, publicado no fórum O Mundo da Corrida, que Sálvio foi um homem muito estimado por todos quantos andam no mundo do desporto e era visto como um exemplo para muitos. Foi funcionário das Finanças de Matosinhos. Exerceu cargos em várias colectividades desportivas do concelho e por onde passou procurou sempre incentivar e manter em constante actividade o maior número de pessoas na prática do desporto. Jogou voleibol no Leixões e F.C. Porto até aos 40 anos (só um craque poderia jogar até esta idade no topo deste desporto), tendo ganho mais de 10 títulos nacionais, diversas vezes internacional e mais tarde Selecionador Nacional de Juniores. Dedicou-se ao atletismo assim que abandonou o voleibol e era uma presença quase obrigatória nas provas de atletismo, especialmente as disputadas no norte do país. Mais tarde tornou-se num adepto das corridas na natureza e seria visto como um ícone nas corridas de montanha. Numa fase mais recente passou também a praticar Orientação em representação do Grupo Desportivo 4 Caminhos (GD4C). Era amigo do seu amigo e, acima de tudo, estava sempre pronto a ajudar e a colaborar com todas as modalidades desportivas. O seu espírito de bon-vivant conseguia cativar todos os que o rodeavam. Pelo que também pude perceber, tinha alma de escritor, de poeta. Não sei de que faleceu, ou porque razão seres assim tão queridos por outros partem deste mundo, mas tenho a certeza que deixou um vazio perto daqueles que tocou e inspirou. Parte dos seus textos encontra-se aqui: http://www.omundodacorrida.com/Salvio.htm Por tudo isto, quer-me parecer que o local onde se desenrolou esta prova foi em tudo a homenagem perfeita a um homem que, como tantos de nós, se sentia em comunhão quando se via rodeado por este meio natural.
O local
Não conhecia a Serra da Freita. Ou melhor, não conhecia o local fisicamente, mas parece que por tudo o que já ouvira falar dele deveria adivinhar como seria. Mas não, enganei-me redondamente. Todos os que praticam corridas de montanha, ou trail running, ouvem falar aqui ou ali do Ultra Trail da Serra da Freita. E normalmente não pelas melhores razões, mas sim porque esta é uma das provas mais duras do nosso calendário de trail running. E o que significa aqui a dureza? Significa que numa prova com 70 km de extensão, muitos deles são feitos em descidas acentuadas, outros tantos em subidas íngremes, alguns atravessando rios, rochedos, poucos realmente planos, mas quase sempre com muitos (e grandes) obstáculos à mistura. No meio de tudo isto, há tempo para desfrutar de umas das mais bonitas zonas paisagísticas do nosso país, com extensões a perder de vista, montanhas e vales lindíssimos, sempre verdes e a respirar vida para onde quer que se olhe. E posso ousar dizer que, independentemente das dificuldades sentidas por uns e outros, ninguém fica indiferente a toda a envolvente que nos acompanha durante as intermináveis horas de duração desta prova.
A corrida no meio da serra da Freita
[caption id="attachment_1764" align="alignright" width="300"] Diana, Jorge, Ana, Pedro, eu e Inês[/caption] Após algumas peripécias protagonizadas mais uma vez por este grupo que presta mais atenção ao convívio (e não é afinal de contas isso o que mais interessa?) do que aos aspectos logísticos que estas coisas envolvem - desta vez chegámos ao local da prova sem sítio para dormir -, lá nos apresentámos sábado de manhã no parque de campismo para levantar os dorsais e alinhar à partida. Não sem antes nos sentirmos tomados por uma autêntica onda meio de desânimo, meio de pânico e nervoso miudinho, quando durante a noite fomos acordados por um autêntico dilúvio. Sim, depois de um dia formidável e de um final de tarde de 6ª feira lindíssimo no meio das primeiras vistas da serra, a noite foi de chuva e a manhã poucas melhoras trazia. Mas como bons desportistas que somos, lá ganhamos coragem e nos fizemos ao desafio, vencendo o desânimo com música e a chuva com os impermeáveis. Foi já no parque de campismo que tivemos contacto e ficamos com a curiosidade de saber quem afinal teria sido Sálvio Nora, curiosidade suscitada pelo enorme cartaz de homenagem ao mesmo e pelos comentários escassos dos outros atletas que conseguíamos apanhar aqui e ali. Mas com pouco tempo até ser dado o tiro de partida e ainda com o controlo inicial para se fazer, lá alinhamos uns com os outros, aproveitando os últimos momentos para algumas despedidas com os que ficavam, para reencontrar no meio do pelotão algumas caras amigas e desejar umas quantas "boa sorte" e "boa prova" aos que iam tentar superar o desafio que nos aguardava. Não vou conseguir descrever em pormenor o que foram para mim mais de 14 horas de prova, nem sequer cronologicamente, já que a uma certa altura os momentos confundem-se e a sucessão de quilómetros fundem-se numa mistura onde só ficam flashes de acontecimentos marcantes, pelo que de melhor ou pior tiveram. Portanto partilho esses momentos, aqueles que considero terem sido para mim as aprendizagens que tiro destes eventos.
Devagar se vai ao longe
Já diz o ditado... e como já tinha ouvido falar tanto deste duro desafio, decidi abordar os primeiros quilómetros de forma calma e muito ponderada, aproveitando para aquecer os músculos e soltar bem as pernas, mordendo o impulso de acompanhar os primeiros atletas que rapidamente desapareciam já lá bem à frente. E assim as primeiras horas foram passadas na companhia do bem disposto Pedro Quina, misturando sempre a nossa conversa com a de outros atletas, formando assim os tais grupos que neste tipo de provas longas sempre se divertem, trocam opiniões e se distraem, fazendo com que as primeiras horas pareçam minutos e que os primeiros quilómetros não passem de mais um daqueles treinos simples que todos estamos mais que habituados a fazer. Mas logo nos começámos a aperceber do que nos esperava. Depois da primeira dezena de quilómetros ter passado de forma fácil, já na famosa descida do Carteiro começámos a sentir em que consistia a dureza da prova. As descidas que normalmente são abordadas de forma rápida (pelo menos por quem sabe), aqui talvez consistissem a pior parte do percurso. E o que se costuma dizer nestas lides é que a descida é pior que a subida, porque ao fim de alguns quilómetros o impacto acumulado pode-se revelar fatal para superar todos os obstáculos seguintes, que aqui não seriam poucos. E como o ditado diz para se ir devagar, convinha não acelerar em demasia e resistir mais uma vez à tentação de voar. Um dos pontos engraçados desta prova está nas inúmeras travessias de cursos de água, ora cursos em que se alcança a outra margem com um salto, ora mais largos, em que nos víamos obrigados a escolher as melhores pedras (de preferência não escorregadias) para não molhar já os ténis. Claro que esta coisa de não molhar os pés é sempre relativa, porque mais à frente esperava-nos pelo menos uma travessia com água no mínimo até à cintura. Na minha opinião, estas coisas ou se fazem com boa disposição ou nem sequer convém enfrentar. E quem quer um conselho, a melhor forma de manter a boa disposição é relativizar algumas das dificuldades que se vão apresentando. E as travessias dos rios são umas dessas dificuldades que convém relativizar. É engraçadíssimo ver os atletas no início cheios de cuidados para não molhar os ténis nos riachos e depois da primeira travessia a sério (onde alguns até escolhem ir a nado) já quase ninguém escolhe ir a seco, pois realmente o caminho mais curto (não necessariamente mais seguro) é ir pelo meio da água.
Atenção à segurança
A segurança é aqui (na água mas não só) um aspecto a ter em conta, já que assisti a algumas quedas, umas mais feias que outras, umas que não passaram de arranhões e outras que tiveram direito a feridas abertas. Para quem participa como para quem organiza, há que pensar que quando se corre se arrisca ou mais ou menos e, se se arrisca demais, aumenta-se o nível de risco, e isto pode significar não só terminar a prova mais cedo como arranjar uma lesão grave que nos atire para fora desta actividade durante uns tempos. Portanto o meu conselho, o de alguém que teve muito tempo para assistir a um pouco de tudo, vai no sentido da prevenção, ao invés do remedeio. Este é um ponto interessante e que se deve abordar vezes sem conta, já que a segurança faz-se ao longo de todo um percurso, não só na corrida propriamente dita como em tudo o que a acompanha. No meu caso, corri com uma ferida ainda meio feia na mão, pelo que levei na mochila os cuidados necessários para a mesma: Betadine, compressa, gaze... e se deu jeito a mim, deu também a mais duas pessoas, um com uma ferida e outro com uma entorse. E posso dizer que de futuro, em provas onde a dificuldade técnica seja assim tão elevada, vou-me fazer acompanhar de um mini-kit com estes cuidados primários. Afinal não é mais do que faço em casa ou no meu automóvel, certo? Felizmente tudo o resto correu bem. Os cenários dignos dos melhores postais ou dos écrans panorâmicos com a melhor tecnologia 3D sucediam-se um após o outro e só depois do sol se pôr atrás do horizonte montanhoso é que foi possível deixar de prestar algum tipo de atenção a esta envolvente. Aqui já eu corria há algumas horas sozinho, tendo deixado os meus companheiros de corrida (e de conversa) para trás, já que o meu corpo me pedia para correr cada vez mais. Foi também engraçado assistir a este desenvolvimento ao longo de tantas horas, o que só prova que a estratégia de começar a prova mais lento resultou, juntamente com os abastecimentos bem feitos e ponderados (o que eu agradeci no km 50?! pela bifana, a boa canja e o cafézinho no final), pois terminei a correr com força e ânimo e (juro) com vontade de não terminar.
A prenda que todos nós levamos para casa
Recordo novamente que o Sálvio gostava da natureza. Reafirmo como eu gosto e, com certeza, como todos os que fazem trail running gostam da natureza. E mais do que lugares no pódio, medalhas ou diplomas, talvez a melhor prenda que todos trouxemos para casa depois de mais este fim de semana tenham sido aqueles maravilhosos momentos de boa disposição, de contacto uns com os outros e com aquela bonita envolvente. Porque é aquilo que deixamos para trás que nos faz sempre regressar. E nas palavras do homem que se homenageou neste fim de semana: "À euforia provocada pelo contacto com a natureza e pela competição sucede a chatice do quotidiano. Que pena não podermos permanecer sempre num mundo fantástico..." - Sálvio Nora
[...] mais) de ter passado nestas coisas das corridas meteram areia. Também meteram água, como na Serra da Freita, mas quem me conhece sabe que eu adoro água e escalada, portanto não é um bom exemplo. Com areia [...]