Depois de um post sobre uma prova em modo lento, mas partilhada em modo rápido (obrigado Susana pelos sempre fantásticos momentos de leitura que nos proporcionas), eis que deixo aqui a minha contribuição ao relato do Trail do Almonda, prova por mim feita em modo rápido mas partilhada de forma lenta. Demorou mais do que tempo a sair do forno. E por falar em forno...
... eu vou falar do calor!
Os meus posts, ao contrário dos posts da Susana (e por isso é que esta colaboração se complementa bem), sempre recaíram mais sobre a vertente técnica "da coisa". Quando escrevo gosto de pensar principalmente naqueles que, ou não correm, ou correm muito pouco e, assim sendo, querem é adquirir conhecimentos! Querem saber como se respira corretamente, como é a passada A ou B, como é isso dos trails, que ténis escolher para esta ou para aquela corrida, ou o que fazer quando se tem que correr debaixo de um calor escaldante. Por essa razão, já antes da prova eu havia aqui deixado um post com 10 dicas úteis sobre como correr com calor, isto porque já se adivinhavam algumas "chatices" com as altas temperaturas previstas para o fim de semana. E como "quem vai ao mar avia-se em terra", num quase processo de auto-mentalização achei por bem partilhar estas dicas. Se as segui todas? Quase todas. Pelo menos as que eram possíveis de controlar, já que algumas, como a dica que diz para "procurarmos as sombras para correr" foi difícil de seguir.
Como é o calor no Trail do Almonda
O Trail do Almonda já é caracterizado por ser um trail tipicamente quente. Já no ano passado assim foi e este ano não foi exceção. As previsões apontavam já há alguns dias para temperaturas de cerca de 42ºC e há quem diga que lá para o meio da serra rondaram os 44º/45ºC. E as sombras das árvores ou eram escassas ou inexistentes, pois a vegetação típica da Serra D’Aire e Candeeiros é rasteira. Nestas condições, quer-me parecer que se a organização tivesse antecipado a hora da partida para as 8 horas (em vez das 9 horas previstas) ganhava-se 1 hora ao calor e ninguém iria levar a mal. Mas tudo bem, não há nada que com a devida preparação não se faça. Como disse e bem a Analice: "no deserto estava muito mais calor!!!" Correr com o calor que se fazia sentir não é fácil e, por muito que se beba água ou bebidas isotónicas, às tantas parece que não é suficiente. Nos pontos mais quentes, o ar transformava-se numa coisa pesada e densa, impossível de inspirar. A boca secava passado um par de minutos depois do último gole de líquidos e, não fossem os postos de abastecimento de 5 em 5 kms, esta não teria sido uma boa experiência. Parabéns à organização! Mesmo assim foram alguns os casos de desidratação e atletas que, de forma consciente ou forçada, terminaram a prova antes do fim. A estes digo que não se preocupem, pois a serra não se vai embora e é bom que possamos voltar sempre a casa a gozar de boa saúde, para mais tarde podermos usufruir deste desporto em pleno. Com calma tudo se faz.
Como se corre com calor?
Com calma e com cabeça! Beber água nestas situações pode não ser suficiente. Mais do que água, as bebidas isotónicas são essenciais para não desidratarmos com a exposição a tamanhas temperaturas. A água não tem aquilo que o nosso corpo necessita repor e que deita fora com a transpiração, como o sódio, sais minerais e outras coisas essenciais que se podem encontrar nas bebidas isotónicas. [caption id="attachment_4159" align="alignright" width="300"] O reservatório de água com o isolamento "home made"[/caption] "Ah mas passados uns minutos o isotónico fica quente!!!" dirão vocês. Claro que fica! Mas vai um truque interessante? Preocupado com esse facto, na noite anterior fiz umas pesquisas na net e acabei a fazer bricolage à mochila de hidratação. Peguei no reservatório de água e revesti-o de papel de prata com um bocado de saco isotérmico de supermercado, cortado à medida como um "saco cama" e... surpresa das surpresas! O líquido só chegou à temperatura "morno" (não chá) já perto dos 25km, acreditam? Antes disso andou entre o fresquíssimo (ao início) e o fresquinho (lá pelo meio). Se não acreditarem experimentem, pois cá eu vou levar a invenção (talvez melhorada) para a Ultra Maratona Melides-Tróia! Outra coisa imprescindível para levar para provas com estas características são saquetas de sal. Também se pode encontrar o sal em comprimidos próprios para estas andanças, mas tanto uns como os outros servem exatamente o mesmo propósito da anti-desidratação. E experimentem numa prova quando tiverem uma cãimbra comer um pouco de sal... já pude comprovar e não vos dou nem 5 minutos para as cãimbras passarem!
A corrida, os amigos, os conhecidos e os desconhecidos
A Susana diz no início do seu post (modo lento) que é praticamente impossível equacionar eu e ela cruzarmos a meta ao mesmo tempo. Acho engraçado isso. Acho engraçado porque quando vejo relatos dos Karnazes ou dos Kilians (ou mesmo das Frosts) sobre as suas corridas, ou quando leio sobre os recordes que batem sou levado a pensar (e não devo ser o único) que para eles é fácil ganhar provas, porque têm uma grande preparação física e mental, blá blá blá. Em parte é isso que acontece, mas é mais do que certo que cada vitória lhes sai do pelo e cada uma dessas conquistas é feita quase sempre nos limites. E vos garanto que os primeiros não sofrem menos do que qualquer um de nós, pelo contrário. De alguma forma eles são os primeiros! O meu objetivo no Trail do Almonda era, antes de mais, conseguir chegar ao fim da prova sem problemas. O segundo (vá lá, o primeiro e meio) seria tentar igualar ou fazer melhor tempo que no ano passado. Mas tal como dizia ao Pedro durante a viagem de carro, se numa prova de trail mudarem uma só característica (como por exemplo a altimetria ou... as condições climatéricas), não podemos esperar fazer uma comparação fidedigna com a mesma prova ano após ano, muito menos com outras provas de distâncias semelhantes. Da edição de 2012 para a deste ano, além do percurso inicial ter sido alterado (a meu ver para melhor), o calor também veio acrescentar não só uns graus de temperatura, mas também de dificuldade. E fiz mais uns minutinhos que no ano passado. Paciência. Se achei a prova mais difícil este ano por causa do calor, certo é que deu sempre para encontrar algum elemento facilitador aqui e ali. Fosse entre amigos ou perfeitos desconhecidos, são sempre muitos aqueles que contribuem para que nestas provas nos sintamos todos como parte de uma grande família. Apesar de ter feito a maior parte do meu percurso de forma meio solitária, de vez em quando ou aparecia uma lebre para puxar por mim, ou era eu que servia de lebre a alguém. Regra geral, pude reencontrar sempre (é muito bom isto) muitas das amizades feitas nas corridas ao longo destes últimos 2 anos e felizmente fazer novos amigos. Não posso é dizer exatamente com quem me fui cruzando ao longo da prova, porque além de ter uma péssima memória para nomes, normalmente vou tão metido dentro da corrida que não vejo ninguém (desculpem-me por isto, da próxima vez atirem-me um calhau para me chamarem a atenção). E nesta prova era preciso muita concentração, tal era o número de troncos, raízes e pedras, muitas pedras no caminho! Uma das coisas que vou podendo constatar nos pelotões da frente é que nunca há muito tempo para grandes conversas. Nem para conversas, nem para fotos ou outras diversões. É correr senhores, é correr! Ou porque é necessária atenção redobrada ao piso, ou porque a subida não deixa fôlego disponível para grandes conversas, ou porque no abastecimento, apesar de estarmos em modo parado, a boca está cheia de laranjas ou bananas (e no Almonda melancias!!!) e não há tempo a perder! É enfiar alguma coisa pela goela abaixo e desatar a correr novamente. Por isso normalmente pouco se conversa lá à frente. Não tem muita piada, confesso. Que me lembre, à exceção dos abastecimentos, só parei para dois dedos de conversa uma vez durante toda a corrida: quando encontrei o Fernando Gomes parado a meio da primeira subida (visão muito rara neste amigo, monstro dos trails). Infelizmente uma lesão na perna não o deixava continuar, pelo que, depois de uns segundos a trocar impressões e garantido que estava bem, segui a minha corrida.
Os 4 momentos do Trail do Almonda
Já aqui referi que a parte inicial do percurso sofreu este ano uma alteração, em relação ao ano anterior. Mas as 4 principais referências mantiveram-se praticamente inalteradas. As 4 referências no percurso e que são verdadeiros momentos-chave a vencer, para quem quer sobreviver a esta prova:
1º A longa subida - km 10
Foi aqui que encontrei o Fernando Gomes. A meio da grande subida! Quando o deixei, bem me gritou ele "ATENÇÃO QUE AINDA SÓ VAIS A MEIO DA SUBIDA!!!" E que subida! Não corria nem uma brisa. Apesar de ser talvez o único local com algum abrigo das árvores, o ar era pesado e denso, irrespirável, dificultado ainda mais pela inclinação íngreme e interminável. É daquelas subidas manhosas, que um momento parece que estamos a chegar ao fim e já no outro nos apercebemos que ainda não é ali... ainda falta mais um bocadinho. Mas tudo o que sobe, depois tem que descer.
2º A rápida descida - km 14
Foi rápida, muito rápida! Após a ascensão feita até ao topo, segue-se um estradão interminável, cheio de pedras (atenção, muita atenção às entorses!!!) e cheio de velocidade! É onde me divirto e onde recupero muito tempo. Felizmente os meus paizinhos deram-me umas pernas compridas que me permitem aproveitar cada salto e cada vôo para correr rápido sem me cansar em demasia. Não há muito para dizer. Ultrapassei alguns atletas e colei-me a um outro ainda mais alto que eu, que me tinha ultrapassado na subida, cheio de força (parecia que eu estava parado)... mas também lhe custou, aposto!
3º A longa descida - km 22
Esta foi aquela descida que a Susana chamou no seu post de "o secador"! É aquele tipo de descidas em que me divirto muito mas muito... mas que mais tarde venho a pagar o preço por tamanha diversão. É uma descida de cerca de 4 km, feita quase sempre num single track cercado por vegetação cerrada (ai as silvas, as silvas!!!) e cheia de obstáculos: muitas pedras, algumas soltas e outras grandes, daquelas que dão vontade de saltar por cima e aterrar do outro lado. E descidas bem inclinadas com terra dura e firme, algumas das quais até dá para aproveitar o deslizar natural das solas dos sapatos para uma pitada de diversão acrescida. E qual é o preço a pagar afinal? Tanto tempo em descida muito rápida cansa muito rapidamente os músculos das pernas, pois estes atuam como amortecedores em cada salto e obstáculo que se ultrapassa a saltar. Como já faltava pouco para terminar a prova, não estava tão preocupado assim com a fadiga que acrescentava às pernas. Nas provas longas nem pensar em fazer o mesmo! Aqui o problema veio nos dias seguintes, pois passados 2 dias ainda sinto algumas dorzinhas provocadas por aqueles momentos de diversão...
4º Os últimos 2 km
A fornada, o bife na pedra, sei lá! Chamem-lhe o que quiserem. Aquela pedreira a marcar os 2 últimos quilómetros de prova foi um dos sítios mais quentes por onde passei numa prova. Agora sei o que sente um bife grelhado! Passadas já mais de 3 horas debaixo de tanto calor, era inevitável que me sentisse com pouca força. Mas na realidade, apesar de pouca força, já me sentia mais para o zonzo do que gostaria de sentir. E nem a visão da torre da igreja, que marcava o local de início e chegada, me animou. Estava comprovadamente desidratado pelo teste da urina (de 1 a 8 eu estaria no 7). Não admira que sentisse todo o corpo a negar-se a correr ou a fazer qualquer esforço. E correr rápido, nem mesmo na última descida, que normalmente é acompanhada de grande energia, devido aquele sentimento de euforia por se conseguir chegar ao final. Quem estava no fim era eu.
Concluindo a prova
Mesmo assim, com 3h24m (mais 10 mins que no ano passado), inverti a posição do ano passado (43º lugar) e consegui ficar num bonito 34º lugar. Foi apesar de todas as dificuldades uma prova tradicional e pautada por um excelente ambiente e uma excelente organização, que a começar pelo profissionalismo e a acabar na simpatia, não deixa os seus créditos por mãos alheias. Se consideraria participar novamente neste trail no próximo ano? Claro que sim! E pelo delicioso arroz doce do final diria já que sim! E recomendaria esta prova a alguém que se quisesse iniciar nos maiores trails? Sem dúvida! Mas só se fizer um bocadinho menos de calor... vá lá... para o ano que vem, pode ser um pouco menos de calor? Foto: +KMS
[…] testada a distância maior. Pelo caminho experimentei de tudo. Provas curtas e longas. Experimentei correr com calor e correr à beira da hipotermia. Experimentei triatlos, curtos e longos. Agora espero com ansiedade […]