Ter | 05.06.12
Trail running em estado puro no AXtrail® #2 série
José Guimarães
Gosto de saber que aprendo com os erros. Ou mesmo que sejam apenas azares, gosto de saber que até eles me trazem algum tipo de lição, mesmo que esta não seja assim tão clara à primeira vista. Depois dos últimos azares e dos alguns abusos cometidos, a paciência dá frutos e voltar a superar-me coloca-me um sorriso na cara. Este fim de semana que passou voltei a correr com puro gosto pelo que fazia. Depois de algumas semanas parado por causa da fisioterapia ao joelho e de um regresso às corridas meio doloroso em Portalegre, o regresso aos treinos tem sido feito com cautela e sempre a prestar atenção aos sinais que o corpo emite: se o joelho se queixa, se a dor no tendão na perna regressa, etc. Por esse motivo concentrei-me também muito na natação e ainda tive o prazer de dar uma valente volta de bicicleta com o Pedro Quina, que depois da Serra de São Mamede ainda não quer ouvir falar em grandes correrias. Tudo apontava para que esta prova - a 2ª série do AXtrail® - corresse bem, mas nunca se sabe o que pode acontecer numa prova de trail, ainda para mais de noite. A minha falta de experiência em provas nocturnas, a juntar ao nervosismo pré-prova, pensar se as pilhas do frontal estão bem carregadas, na fita estar bem apertada, mas não em demasia para não incomodar na cabeça, o lenço que fazia calor... tantas preocupações que nos enchem a cabeça antes da partida. E para quê? Concentremo-nos no que interessa: correr! A corrida em Alvaiázere Posso dizer que tinha algumas expectativas para esta corrida. Primeiro porque a distância era pequena (28 km). Depois porque, pelo que já tinha ouvido dizer, o percurso tinha partes muito técnicas, e como eu gosto disso! E depois porque a altimetria indicava subidas com um desnível máximo de +300 m, o que daria para gerir bem o esforço e puxar um bocadinho, coisa que já não fazia há algum tempo, confesso. A partida deu-se pouco depois das 20h00 e já no primeiro bocado inicial no asfalto deu para perceber que a corrida ia ser rápida. Aproveitei para alongar a passada, aquecer bem as pernas e trocar alguns cumprimentos com uns e outros, juntamente com desejos de que tudo corresse pelo melhor. Ainda não sabia se aquela estratégia de puxar um pouco mais no início de asfalto iria resultar ou não, mas foi a opção que me pareceu a melhor e arrisquei. Depois dos 2 km saímos da estrada e começámos a subir, primeiro por uma bonita escadaria, depois serra acima. Confesso que não guardo na memória como foi o percurso completo de forma detalhada. Lembro-me de algumas partes melhor do que outras. Lembro-me bem que nesta primeira subida da serra, o pelotão inicial do asfalto se começou a dispersar, para se começarem a formar alguns grupos pequenos, conforme o ritmo que cada pessoa identificava na outra. Recordo-me que a minha respiração começava a ser forte e lembro-me bem da transpiração abundante, porque o tempo estava abafado e húmido e o ritmo mantinha-se forte e compassado desde o início da subida. Só pensava se mais tarde não me viria a arrepender de começar desta forma, mas sentia-me bem e queria continuar assim. Aproveitando as pernas ainda frescas e mais 2 atletas que também impunham um bom ritmo na subida, depressa chegámos em grupo ao trilho na vertente da serra. Este trilho obrigava-nos a ter atenção redobrada com o equilíbrio, porque era estreitíssimo e com muitas rochas, onde os pés e o corpo teimavam em descair para a direita, para a vertente em declive. É engraçado como em alguns momentos podemos tomar decisões que tanto podem correr bem, como correr mal. Avançávamos num ritmo interessante e, um pouco mais à frente, abrandámos quando alcançámos um outro grupo mais lento. Sem trilhos alternativos nem grandes escapatórias seguras, teríamos de esperar uma oportunidade para os ultrapassar. Mas de repente ouço um arfar forte do meu lado esquerdo e quando me viro reparo que um dos elementos do grupo onde eu seguia optou pelo que já me ia na cabeça há algum tempo, mas não tinha tido coragem de deitar cá para fora: atacando um grupo de rochas maiores do lado esquerdo da vertente da serra, fez delas alavanca e projectou-se para a frente do grupo mais lento. Sem pensar nem em como nem porquê, inspirei e de um salto também pelo lado esquerdo colei-me a ele, concentrando-me no bailado que ele fazia saltitando entre as pedras e que eu imitava. Aproveitando ambos o impulso da sua boa iniciativa, em poucos minutos nos vimos no meio do nevoeiro do topo da serra, que antecipava a primeira descida do percurso. As descidas são, para mim, algo que tem tanto de incrível como de indescritível. Há pouco falei do bailado que o meu desconhecido companheiro de prova fazia saltitando por cima das pedras. Esta descrição do bailado veio a propósito de uma conversa com um amigo, numa tarde de escalada. Tal como neste desporto, que se quer suave e fluido como um verdadeiro bailado, também no trail running esta é a forma mais adequada que encontro para descrever o que já tive o prazer de experimentar algumas vezes e com que aqui me voltei a deliciar. A descida foi longa, mas tão rápida que acabou cedo! Aproveitando as pernas já bem aquecidas e o outro corredor que seguia à minha frente, saltavamos e corríamos o melhor que nos era possível (segundo o meu relógio, o ritmo aqui chegou a ser de 3:35/km), mas mesmo assim ainda fomos ultrapassados por um outro corredor, ao qual nos colámos durante os quilómetros seguintes. Algum tempo depois, já a entrar no meio das árvores, foi altura de ligar os frontais, pois a visão já acusava o esforço da falta de luz e já não se conseguiam evitar alguns tropeções. Jogando pelo seguro, o resto da corrida seria feito com luzes ligadas. Daqui até próximo do fim, pouco mais haveria a fazer do que tentar manter o ritmo uns dos outros e não dispersar muito o grupo, o que nem sempre foi possível. Entre declives e aclives, a melhor parte do percurso foram os quilómetros (perdoem-me se não foram muitos, mas assim pareceram) no leito seco do rio. Quando aqui cheguei havia deixado o meu perseguidor seguir caminho no último posto de abastecimento, onde me demorei um pouco mais, seguindo então sozinho o resto do percurso. E sozinho foi como percorri esta fantástica parte da prova, levando à letra o que disse há pouco sobre o bailado, procurando saltar de pedra em pedra com as pontas dos pés o mais leves possível e escolhendo o menos possível o percurso pelo solo, escuro e muitas vezes traiçoeiro. Já de volta ao asfalto, com o tendão da perna esquerda a acusar o esforço das rochas (e a subida ao castelo de Marvão), mas com o espírito bem satisfeito, fiz os últimos quilómetros até entrar no estádio ao meu ritmo, onde o ambiente de boa disposição me aguardava, desde o speaker da chegada até aos amigos que reencontrava. Isto é o Trail running O motivo pelo qual corro no meio da natureza é porque desta forma corro com a natureza e me sinto parte dela. Ao contrário de uma estrada que corta e mata o que encontra à sua frente para seguir o percurso, na corrida de montanha adapto-me ao terreno para seguir o meu caminho, respeitando cada trilho, cada árvore e cada raiz, admirando cada rocha e cada paisagem. Recordo-me de ler que os velhos mestres das escolas de Kung-Fu só concluíam os ensinamentos daqueles alunos que conseguissem caminhar sobre papel de arroz sem o danificar. Da mesma forma, numa corrida é possível fundirmo-nos com o que nos rodeia, tornarmo-nos parte dos obstáculos e conhecermos até a sua forma de "pensar". Há fluidez, há simbiose com o meio que nos envolve. Sem isso não me faz sentido correr. Fica assim concluído um bom e divertidíssimo desafio, fazendo jus ao mote do AXtrail®: trail running em estado puro! Venha a próxima - e última - etapa.