Quero começar este post dizendo que detesto correr na areia! O pior que me podem fazer em qualquer prova de trail é colocarem-me à frente um bocado de areia para correr. Ou neste caso, debaixo dos pés. No entanto, algumas das maiores superações por que me lembro (sim, porque outras não me lembro mais) de ter passado nestas coisas das corridas meteram areia. Também meteram água, como na Serra da Freita, mas quem me conhece sabe que eu adoro água e escalada, portanto não é um bom exemplo. Com areia recordo particularmente bem o troço de praia durante o Ultra Trail de Sesimbra (2012), acompanhado pelo Luís Trindade (íamos a tentar alcançar a Carmen Pires, lembras-te?)... Ou do Ultra Trail Noturno da Lagoa de Óbidos... aqueles quilómetros na areia fofa da praia junto às dunas estoiraram com as minhas perninhas de gafanhoto. E logo me fui meter este fim de semana com uma ultra em areia. Sim, falo da célebre UMA - Ultra Maratona Atlântica Melides-Tróia.
Antes da descrição, uma conclusão
Esta foi uma prova de superação do início ao fim. Superação ao nível físico, mas também psicológico. Não deve haver outra prova no calendário em que, no momento da partida, se consiga ver (ou ter uma noção, apesar de muito longínqua) o local da chegada. E querem ficar a saber o quanto custa a esta cabecinha ouvir o tiro da partida em plena praia de Melides, olhar em frente e pensar "Xiii, é para aliii que vamos?" Do ponto de vista da superação física, esta foi - segundo ouvi dizer - uma das edições mais difíceis da UMA de que há memória. O terreno apresentava-se em Melides nas piores condições possíveis: maré quase no preia-mar à hora da partida, uma zona no topo da praia horizontal e plana, mas com areia seca e muito fofa... e um areal inclinado (quase cavado) em direção á rebentação, que progredia em pequenas (pequenas?) dunas, ora secas, ora inundadas pelas ondas. Fosse por onde fosse que se quisesse correr, a areia estava sempre demasiado mole para se conseguir correr em condições. E este início de prova foi - pelo menos para mim - desgastante, numa escala que alternava entre o difícil e o dificílimo de conquistar... Sim, conquistar! Porque este tipo de terreno não se vence, conquista-se! Há diferenças!
Por onde ir?!
Pode parecer uma pergunta idiota, principalmente numa prova que é sempre em frente... Após a partida, ainda sem me ter decidido bem por que zona deveria correr (se na zona horizontal e seca, ou na zona inclinada e molhada), vi-me transformado numa barata tonta a experimentar as duas opções. A que me parecia ao início mais viável era correr no topo da praia que, apesar de ter areia mais fofa, tinha marcados os trilhos das moto 4 do pessoal da organização e das filmagens (grande cobertura feita pela ETIC, parabéns!), que deixavam a areia um pouco mais calcada e própria para correr. Mas quando esta opção terminava, ou porque a passagem dos outros corredores deixava a areia revolta, ou porque simplesmente a moto 4 escolhia outro percurso para fazer, lá decidia eu descer à linha da rebentação e experimentar a segunda opção. Talvez esta última opção fosse a mais acertada. Contudo implicava ter que molhar os pés ainda muito no início da prova e eu não queria que isso acontecesse. Pelo menos não para já. Assim sendo, ia alternando entre opção 1 e opção 2... nada mais errado! O esforço que implicava para as pernas ter que subir a duna em busca do trilho da moto 4 (opção 1) revelava-se tão desgastante que, quando lá chegava, não tinha forças para correr decentemente. E, mesmo na opção 2, o esforço que implicava subir e descer as dunas escavadas pela rebentação - fugindo das ondas - também se revelava uma opção pouco adequada. O que fazer então? Passados alguns minutos deste sobe e desce interminável, vendo uma série de atletas a passar e eu a sentir-me cada vez mais cansado, a respiração ofegante, as pernas cansadas e já a arder, recordo-me de olhar para o GPS e ver somente 2,7 km de prova decorridos... "Estou tramado!!!" - pensei! "Já estou neste estado? Assim não vou conseguir!" Pensamento errado, não é José? Vá, toca a respirar fundo e a pensar: "Qual é o melhor piso onde podes correr? O mais duro... E onde é que o piso está mais duro? Junto à água... Bora lá então!" Opção acertada! Apesar da água nos pés, que consequentemente trazia areia para dentro dos sapatos e os tornava mais pesados, a diferença de passar para um piso um pouco mais duro revelou-se crucial! De repente senti que a passada se tornava mais consistente e fluída, a frequência cardíaca baixava e o cansaço desaparecia. E aos poucos fui conseguindo alcançar aqueles grupinhos de atletas que no início haviam passado por mim, ainda sob o efeito barata tonta!
Pés molhados e com areia
Apesar de ter de correr muitas vezes atravessando as ondas que se cruzavam no nosso percurso, optei por quase nunca me desviar muito da trajetória reta que agora levava. Além de não ter sido uma má opção, porque devido à inclinação do terreno as ondas rapidamente dissipavam, deixando o terreno mais firme para correr, a sensação de correr mar (ou onda) adentro, refrescando pés e pernas (e muitas vezes o atleta do lado) é retemperadora! Que mais dizer? Sabe bem. Ponto! No entanto, com o passar dos quilómetros, a areia que ia entrando nos sapatos ocupavam aos poucos todo o espaço livre para os dedos dos pés, sendo esta a altura crítica em que se começavam a ver os primeiros atletas sentados na areia a descalçar os sapatos para despejar a areia. E quem não o fazia, agravava o desconforto nos pés, como eu. Na chegada à praia da Comporta, já ia na companhia do Carlos Correia (atleta de muita garra e que se revelou importantíssimo na manutenção do ritmo de corrida), quando pensei em parar para descarregar a areia dos sapatos. No entanto, as dores que começavam a aparecer nos quadricípedes chamaram-me a atenção para um fenómeno que já pude experimentar noutras ocasiões, muito conhecido por "se páras agora já não te levantas mais"! Como essa sensação não é das melhores que se podem ter numa prova, na passagem do pórtico da Comporta decidi agarrar nas duas garrafinhas de 500 ml de água que a organização dava e continuar a correr. Era "só" aturar mais 15 km de desconforto nos pés, nada que não se fizesse, se assim se quisesse muito. Mas com o passar dos quilómetros o desconforto só agravava, a cada passada os dedos gritavam por liberdade dentro dos sapatos, as unhas começavam a doer e a areia tinha um efeito tão abrasivo, que optei por me descalçar e fazer os últimos quilómetros descalço. E é inacreditável a sensação de liberdade, de voltarmos a controlar naturalmente uma função tão simples como correr naturalmente e progredir. Fiquei tão satisfeito que me voltei várias vezes para o Carlos e lhe gritei "descalça-te, é ótimo!!!"
Tróia a chegar... ou não
Posto isto, poucos quilómetros faltavam para chegar a Tróia. Poucos mas muito longos! Nos últimos quilómetros passamos por visões de uma ponta de areal que nunca mais chega e, quando lá se chega, dá lugar a nova ponta de areal lá bem longe... e assim sucessivamente. E isto acontece duas, três, quatro vezes... mais? Talvez. Não me lembro. Acontece tantas vezes que às tantas ficamos a pensar se o GPS não estará errado e afinal não estamos com 40 km já feitos, mas sim trinta e poucos. Mas não. A chegada à zona de areal mais povoada por banhistas dá-nos conta que estamos mesmo no bom caminho e que a meta - essa - está já ali ao virar da esquina. Nota positiva para os banhistas, já que raros foram os que não aplaudiam a nossa passagem e nos gritavam palavras de incentivo, como o célebre "já falta pouco!!!" que se ouve aí entre o km 30 e tal e o fim da prova... E foi assim que descalço, com dois autênticos "tijolos" (os sapatos) nas mãos, um sorriso no rosto e lado a lado com um novo amigo, picámos no botão "Stop" dos nossos relógios, demos um abraço e nos dirigimos à tendinha da imperial preta, fresquinha! Tão bem que sabe... Tempo agora para abraçar familiares e amigos e agradecer aquele apoio incansável que, vindo de um lado e de outro, no seu tempo e altura certas fizeram toda a diferença, fosse nos aplausos e palavras de incentivo, nas fotos e nas filmagens, nas conversas ou no silêncio, na companhia feita ao longo de quilómetros de areal sem fim, mas também na ausência. Quando se fazem provas destas, de superação, nunca corremos sozinhos, todos estão presentes e nos dão o seu "empurrãozinho". Pelo menos é assim que eu corro. É isso que também me leva para a frente e me faz conseguir chegar ao meu fim. E é assim que eu gosto de autenticamente me sentir: feliz! Até para o ano, para mais UMA!