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Ex-Sedentário - José Guimarães

A motivação também se treina!

04.09.13

UTMB® (Ultra-Trail du Mont-Blanc®): um desafio insano


José Guimarães
  O Hélder Oliveira volta à carga! Da última vez foi um Ironman, agora regressou do UTMB - Ultra Trail du Mont Blanc para nos contar como foi. Este é um sonho que, como provavelmente muitos de vós, também eu ambiciono concretizar. Até lá vamos sonhando com relatos assim: "E já está! 30 de Agosto de 2013, o meu percurso pelo Trail atingiu o destino. Como a maioria de vós, apaixonados pela montanha e pelo trail, nasci para a montanha e ao abrir os olhos descobri Mont Blanc e o Ultra Trail du Mont Blanc. Passe o exagero, este é o derradeiro certificado “Ultra” para o atleta corredor em montanha. A prova - com inicio em Chamonix - tem 168km de distância, 9,600m de desnível positivo (metros que os atletas sobem) e 19.200m de desnível acumulado (metros que os atletas sobem e descem, acumulados). Durante o evento os participantes percorrem França, Suíça e Itália. É o desafio de uma vida inteira. Quando o UTMB (Ultra Trail Du Mont Blanc) se apropriou do primeiro lugar da minha lista de desafios extreme, na realidade a minha consciência da dificuldade era pouco mais rigorosa do que o conhecimento resultante de umas quantas páginas informativas, sem correspondência à experiência prática. Mas pernas ao caminho! Se o UTMB era o destino, haveria que pontuar e obter os 7 pontos necessários à qualificação para sorteio... sim, sorteio! Apesar de evento extreme e especialmente atrativo para mentes pouco sãs, a verdade é que somos muitos (!) aqueles que ambicionam juntar ao seu palmarés desportivo, mais ou menos amador, a concretização da prova rainha do trail running mundial. Amealhados os 7 pontos, o sorteio ditaria que na minha primeira candidatura ao UTMB seria aceite! Chamonix é o destino! O desafio! Dia 30 de Agosto apresentei-me na partida para a aventura mais violenta e satisfatória algum dia realizada por mim. Às 16h30 (15h30 portuguesas) desse dia, eu estava arrebatado pela dimensão do evento. Chamonix era o Ultra Trail du Mont Blanc. O peso do evento vergava-nos o ego alimentado pelas experiências somadas até ali. Nada se assemelhava! As montanhas em redor de Chamonix e da partida anunciavam uma prova física e psicologicamente absolutamente assustadora, não havia que enganar, estava diante dos nossos olhos, eram metros infindáveis de paredes verticais aquilo que nos esperava a todos. Dá-se a partida! A prova inicia-se envolta por um ambiente inebriante, nenhuma das adversidades inerentes à aventura tinha espaço nas nossas mentes ocupadas em viver os primeiros minutos do sonho Ultra Trail du Mont Blanc. Eram os primeiros minutos daquela fantástica viagem, havia que os respirar. Afinal, aquele era o destino. Os primeiros quilómetros de prova foram tão complexos como a vossa/nossa corrida de domingo matinal à beira-mar. Simples… Afinal não estava a ser complicado, mas a matemática da prova era clara: os 9.600m de desnível positivo estariam algures à espreita nos 168km de prova. Com 8 km de prova e ainda com a luz do dia experimentamos a primeira dificuldade: subimos cerca de 800m (desnível positivo “D+”), numa distância de aproximadamente 6 km. Atingíramos os 1.776m de altitude e, noite dentro, o programa seria esse mesmo: subir! Em Les Contamines, a prova registava 30km e recebíamos um conselho precioso: “A partir daqui a temperatura irá descer muito, agasalhem-se já e gradualmente. Se permitem que a temperatura baixe podem arriscar problemas digestivos.” Não menosprezamos a recomendação do elemento da organização, pois a sua experiência não parecia saída dos livros. A temperatura desceu efetivamente  de forma significativa ao longo da noite e em paralelo com a nossa progressão e aumento de altitude. Nesta primeira noite atingimos altitudes acima dos 2.000m diversas vezes e o carrossel montanhoso começava a testar os atletas com constantes idas aos 2.500m de altitude, 2.400m e assim por diante. A noite interrompida pelo amanhecer indicaria 3.780m de desnível positivo e visitas repetidas a pontos de altitude elevados. Neste período foram acontecendo os primeiros percalços: atletas vomitavam, indisposições generalizadas, consequências da altitude e do esforço. O Mont Blanc apresentava-se. Pela manhã, a realidade era óbvia para todos os participantes, a odisseia seria dura, a gestão de esforço seria um elemento fulcral para a maioria dos candidatos a finishers neste evento. O grupo de portugueses que orgulhosamente acompanhei durante a prova fez da gestão uma disciplina inflexível e o único caminho para a meta. Todo o controlo das sensações positivas e de um corpo ainda fresco e forte na primeira noite, mantendo ritmos lentos, determinariam o nosso destino. Acompanhados pelo sol, o dia de sábado levar-nos-ia até Itália, onde o cenário era simplesmente impressionante e fabuloso! As montanhas vestidas por um manto branco iluminado pele sol radioso impediam que progredíssemos ritmadamente, era obrigatório parar! A vista era rara, as montanhas erguiam-se até alturas estranhas para um Português que habita aos 50m de altitude e deparava-se agora com monstros de pedra que rompiam os céus, em que nem as nuvens escapavam! Lindo, arrebatador, impressionante! A grandeza do espetáculo sobrepunha-se ao meu propósito, transformei-me num mero ornamento quase invisível num quadro único de beleza natural. Fixei aquelas imagens na esperança de perdurarem eternamente na minha memória. A prova continuaria, as notícias via telemóvel iam chegando, era impossível ficar alheado do que ia sucedendo com os portugueses participantes. Em alguns casos as notícias eram boas e noutros más, todos sabíamos que seria assim. Aos 77km de prova era o momento de fazer o balanço da mesma: estava a 91km da meta e com possibilidade de aceder a um saco previamente entregue por mim à organização. Nesta altura fiz uma refeição, troquei de roupa, renovei a proteção das zonas susceptíveis a fricção com recurso a vaselina e apercebi-me das primeiras lesões na pele, virilhas, nádegas e pés, começavam a degradar-se, nada de grave, mas indicador do que se acentuaria ao longo da prova. A saída deste ponto de abastecimento aos 77km denominado “Courmayeur” marcaria um ponto crítico da prova, iríamos realizar 2.000m de desnível positivo em 22km, seria fisicamente violento mas importante do ponto de vista psicológico, ultrapassado este obstáculo estaríamos na marca dos 100km. Vamos à luta! A comitiva Portuguesa lança-se confiante e determinada para este troço, começamos a subir imediatamente após a nossa saída de Courmayeur, foram os primeiros 816m de D+ em apenas 4,9km. Senti que fisicamente não estava a reagir com a mesma eficácia ao esforço, a subida deixou marcas, a fraqueza tomou posse do meu corpo e compreendi que estava perante o primeiro momento complexo da prova. Deveria passar um pouco da hora de almoço, a temperatura havia subido, eu tinha acabado de fazer uma refeição razoável em Courmayeur e estes 816m de desnível positivo caíram-me mal. Insistir no ritmo poderia ditar o fracasso na prova, abrandei significativamente na esperança do corpo reagir e recuperar do péssimo momento que atravessava. Após cerca de 15m minutos, ainda fragilizado, senti algumas alterações físicas positivas, mantive a disciplina no controlo do ritmo e pacientemente aguardei a consolidação da recuperação. Era um momento crucial. Dali a alguns quilómetros iriamos subir aos 2.500m de altitude. Seria uma provação física e psicológica, precisaria da minha melhor condição física possível. Aos 94km chegava ao ponto de abastecimento que antecedia a subida aos 2.500m e éramos prevenidos pela organização e staff médico de que deveríamos levar para aquele troço de apenas 4,5km, tanta água quanto possível. O aviso alertava também para a inexistência de assistência entre o ponto em que nos encontrávamos e os 2.500m de altitude onde encontraríamos um ponto de controlo. A violência e brutalidade física a que seríamos sujeitos era veementemente avisada pelo médico presente. Motivados pela marca dos 100km ali tão perto, saímos para a luta com este aparentemente intransponível obstáculo. A visão era assustadora: uma fila alongada de atletas desenhava um percurso interminável na vertical, o fim da montanha não era visível, desaparecia em frente dos nossos olhos incrédulos. Foram mais de 3h30 a subir, nada de novo. E até aos 100km de distância a progressão em algumas zonas de desnível acentuado já nos tinham obrigado a subir durante 3h a 4h para percorrer apenas 4 ou 5 quilómetros. Concentrados, procuramos o nosso ritmo e subimos de forma moderada e controlada. Aos 98km sensivelmente estávamos no topo daquele poderoso adversário, não tínhamos sido derrotados. A altitude refletia-se num frio insuportável, o cansaço teve de passar para plano secundário, era necessário abandonar rapidamente aquela zona de prova. Os 14km seguintes seriam dos mais tranquilos que encontramos durante toda a prova. A Suíça era o destino, enquanto Itália ficava para trás. Entravamos na segunda noite de prova, a última vez que tinha dormido havia sido na sexta-feira de manhã, agora, sábado à noite e depois de quase 30h de prova, não sentia sono, era um sinal positivo. Em Praz de Fort, com 116km e com cerca de 6.000m de desnível positivo realizados, a comitiva Portuguesa preparava o assalto final à prova, restavam pouco mais de 50km e cerca de 3.200m de desnível positivo. Nesta altura tornava-se uma evidência de que ultrapassaríamos as 40h de prova mas acima de tudo importava-nos levar até ao fim esta jornada, conscientes das dificuldades que viriam num contexto de muito cansaço. Estes 50km finais foram cruéis para a maioria dos atletas, os pontos de abastecimentos transformavam-se em locais de exposição de sofrimento, cada cara expressava um problema distinto, pés destruídos, privação de sono, problemas gastrointestinais, desgaste físico, frio... Para onde quer que olhássemos encontraríamos atletas em dificuldades. Em contrapartida, a alegria de sentirmo-nos capazes de prosseguir em prova e confiantes de que as forças restantes eram suficientes para alcançar a marca dos 168km, davam-nos a motivação indispensável para abandonar cada ponto de abastecimento com a convicção de que seríamos finishers do Ultra Trail du Mont Blanc. Até ao final da prova haveríamos de ultrapassar os 2.000m de altitude por mais três vezes, haveríamos de subir repetidamente - e em montanhas distintas - desníveis positivos de 600m, 700m e até acima dos 800m D+ em pouco mais de 4km. Foi um final de prova terrível, diria, foi um final de prova que seria um início arrasador de qualquer prova. A manhã de domingo nascia, tinha passado a segunda noite em prova e em total privação de sono, não havia parado 1 minuto que fosse para dormir, na verdade nunca tive sono, o desejo de terminar era suficiente para me manter alerta. A manhã era a de chegada à meta, estava perto, o sofrimento estava a níveis elevadíssimos, os pés tinham-se degradado seriamente, eram agora cobertos por feridas, algumas extensas, as queimaduras em algumas zonas do corpo, resultantes de fricção tornavam cada momento de passo em corrida um martírio. Não consigo descrever o nível de sofrimento. A meta tornou-se uma realidade às 13h de domingo com 44h31m de prova. Orgulhosamente cruzei-a com dois portugueses resilientes e Chamonix era nosso! A população e atletas reconheciam o nosso mérito, os olhares dos presentes ofereciam-nos a compreensão de quem vagamente calculava a nossa dor física. Cruzei a meta com 44h31m, 19.200m de desnível acumulado e 168km depois da partida, privado de sono, alimentado a gel e massa, mas finalmente atingi o objectivo. Deixo aqui neste blog uma palavra de respeito a quem tentou e por alguma razão não conseguiu. O vosso destino está traçado e apenas foi adiado. Aos Portugueses com quem partilhei esta odisseia, um cumprimento especial. Partilhamos dificuldades físicas e psicológicas, trocamos necessidades e prestamos ajuda, unimos esforços e traçamos um caminho comum, fomos bem sucedidos. Ultra Trail du Mont Blanc é um sonho, persigam-no, preparem-se e, quando se julgarem capazes, preparem-se melhor. Depois de fazerem o Ultra Trail du Mont Blanc, o trail é outro."